sexta-feira, 13 de abril de 2012

Cultura, subjetividade e novas tecnologias


No último sábado, o filme Sem limites, de Neil Burger, foi exibido no Ciência em Foco, seguido da palestra do psiquiatra e professor Benilton Bezerra Junior, do Instituto de Medicina Social da UERJ. Situando o tema do filme no horizonte contemporâneo das inovações do campo da psiquiatria, Benilton se propôs a abordar criticamente as questões sociais, éticas e morais que são muitas vezes ignoradas diante da euforia causada pelo rápido desenvolvimento tecnológico. De acordo com ele, o filme nos coloca diante do susto que reflete o choque das pessoas diante de novas tecnologias que surgem para alterar condições biológicas, psicológicas ou sociais dos humanos. Foi discutido o recente movimento de transformação da condição humana por meio das mais variadas tecnologias que atualmente invadem nossas vidas. Hoje, a complexidade das tecnologias de que dispomos torna a espécie humana capaz até mesmo de se apropriar dos mecanismos e dos destinos da evolução, não sendo mais compreendida apenas como efeito de vetores naturais, mas como resultado das nossas próprias aspirações e projeções com relação ao futuro. Nossa humanidade estaria relacionada a algum suporte biológico, ou poderia se relacionar também com outras formas de organização, como a sintética? O apelo atual ao aprimoramento das capacidades humanas, prometido pelas biotecnologias, nos afasta de uma resposta definitiva à pergunta sobre o que é ser um humano. As fronteiras entre o natural e o artificial está cada vez mais borrada, e a realidade apresentada pelo filme nos convida a discutir essa e outras questões.

A constituição de um sujeito humano tem a ver com a subjetividade, ou seja, com a vida subjetiva, a experiência mental, a capacidade de refletir sobre si próprio. Na constituição de um sujeito humano, está em jogo um processo que engloba tanto elementos universais como também elementos que dependem do mundo em que os indivíduos vivem, do contexto histórico, social, tecnológico, político, onde aquele sujeito se desenvolve, em relação com uma realidade a partir da qual ele se reconhece a si mesmo. Se nos constituímos como humanos e construímos nossas identidades nessa relação dinâmica entre a cultura e a realidade material, cada época terá um modo específico de conceber o indivíduo e de conceber-se enquanto indivíduo. Na época atual, vivenciamos um momento de transformação em que o indivíduo que cultivava a interioridade psicológica - aquele que se definia enquanto tal por sua dimensão interior, psíquica, afetiva - é progressivamente substituído pela importância atribuída ao corpo e em sua performance, à interioridade rebatida no funcionamento cerebral.

Como exemplo desta transformação, Benilton afirmou ser hoje difícil encontrar um jovem que sofra de angústia existencial, como era comum até meados do século XX. Nos dias de hoje, alguém que sofra de algo parecido convocará prontamente explicações como a depressão, alterações neurais que, por sua vez, requerem algum tipo de regulação química. No lugar da cultura da interioridade, teríamos hoje a cultura somática, na qual a performance motora e cognitiva são definidoras da imagem do indivíduo. Acrescido a isso, no âmbito político, substitui-se o horizonte de utopias pelas regras do mercado, pelos interesses corporativos que tornam o sujeito cada vez mais um consumidor pouco preocupado com o destino do mundo. Neste cenário, entra em cena a questão central tratada pelo filme: o aprimoramento (enhancement), entendido como conjunto de tecnologias e práticas cujo objetivo é ampliar e intensificar capacidades motoras, cognitivas, afetivas, e até mesmo morais dos indivíduos, admitindo a ultrapassagem de nossa condição natural.

Benilton salientou duas posições que se apresentam no debate em torno desta realidade: a que defende uma distinção entre o tratamento e o aprimoramento, tendo em vista o respeito e a manutenção de uma natureza imutável e das características naturais dos seres humanos, entendidas como dadas de antemão; e a posição que discute o conceito de natureza e entende a vida como processo de transformação contínua, da qual não se exclui a condição humana. Para esta última perspectiva, a distinção entre tratamento e aprimoramento é de difícil demarcação, já que a história da humanidade não seria mais que a história de seu aprimoramento: sempre utilizamos tecnologias que alteram o modo de ser humano. Em nossa sociedade controlada pelo mercado, a questão que nos interessa pensar, portanto, é o que está em jogo e o que levar em conta diante desta realidade. Qual a diferença entre a característica humana, desenvolvida com esforço, e outra adquirida com o auxílio da tecnologia? O otimismo exagerado da ciência reclama a necessidade de se pensar a respeito das consequências psicológicas, subjetivas, sociais, culturais, políticas e éticas envolvidas nos usos dessas tecnologias, seus modos de regulação e seus casos particulares, evitando as generalizações e incentivando a atitude crítica e a reflexão.

O debate trouxe ótimas contribuições à discussão, desdobrando diversos temas e colocando novas questões, como o apagamento da dualidade corpo/alma e sua relação com a cultura, e sobre as generalizações da psicofarmacologia aliadas aos interesses da indústria farmacêutica. Nossa próxima sessão acontece no dia 5 de maio, quando apresentaremos uma sessão exclusiva do filme As hiper mulheres (Brasil, 2011), de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. Teremos a honra de receber, como convidado do mês, Cezar Migliorin, com a palestra A potência de um filme comum. Cezar é doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ/Sorbonne-Nouvelle, Paris, ensaísta e professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF. Ele organizou o livro Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. Anote na agenda e espalhe a notícia. Até lá!



3 comentários:

  1. Parabéns pela iniciativa! Tema altamente estimulante e atual! Vou acompanhar o blog!

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  2. Boa tarde,
    A palestra e debate do Benilton foram maravilhosos.
    Como grande admiradora do trabalho de vocês, gostaria de sugerir um convite ao prof. André Martins da UFRJ, pois adoraria vê-lo no espaço "ciência em foco", já que suas palestras sobre mente e realidade são riquíssimas (disponíveis no youtube). Obrigada. Cláudia.

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  3. Olá, amigos do cineclube. Agradecemos pelas contribuições e considerações de vocês. Iremos avaliar com carinho as sugestões, ok? Para nós é "altamente estimulante" contar com essa participação. Até breve! abçs

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