terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A importância do falso diante dos efeitos de verdade


 

No último sábado, aconteceu o encerramento da temporada 2012 do Ciência em Foco. Recebemos o professor de Teoria da Literatura e Literatura e Cinema da UFF, Adalberto Muller, que abriu sua conversa conosco com a palestra F de falso: o autor e seus duplos, logo após a exibição do filme Verdades e mentiras (F for Fake, 1973), de Orson Welles. A conversa gerou um ótimo debate, no qual foram discutidas questões em torno da relação entre arte, verdade, pensamento e política. Adalberto iniciou sua fala situando a trajetória de Welles face ao filme, já que muitos o consideram um projeto afastado daquelas obras que o notabilizaram como diretor, como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). À parte a estranheza que o filme causou na época de sua exibição, Verdades e mentiras foi aos poucos ganhando importância na filmografia de Welles, a ponto de ser considerado, por alguns, seu principal filme. Adalberto comentou também suas relações com motivos recorrentes na obra de Welles, dentre os quais se destaca o percurso em busca de alguém que possui uma identidade suspeita, ao longo do qual se questionam as fronteiras entre a verdade e a mentira. A partir desta marca da autoria de Welles, Adalberto nos convidou a pensar sobre a importância da questão da autoria na discussão sobre a arte dentro das ciências humanas, em cujo contexto o filme está situado.

No final dos anos 60, o papel do autor foi colocado em questão por intelectuais franceses, como os filósofos Michel Foucault (em seu texto O que é um autor?) e Roland Barthes (em seu texto A morte do autor). Foucault, por exemplo, comentou ter sido comum, em outros tempos, a produção artística estar associada ao anonimato. No entanto, em nosso tempo, a assinatura, a autoralidade da obra, parece ser a garantia de seu valor, sobretudo o seu valor monetário. De fato, o filme de Welles tem como uma de suas principais reflexões a pergunta sobre até onde a arte depende da assinatura. Seria a assinatura determinante para a experiência artística? Por haver a importância atribuída ao autor, a autenticidade da obra também se torna importante: a distinção entre a obra verdadeira e a falsa. Neste sentido, o filme de Welles apresenta elementos interessantes desde a produção. Ele é um filme construído a partir de um outro filme, de outro diretor, do qual ele utiliza cenas e sobrepõe diversas camadas, chamando atenção para o aspecto do falso evocado pelo primeiro, adicionando dimensões outras e incluindo também elementos autobiográficos.

Tradicionalmente entendido como um documentário, o filme traz problemas quanto a sua delimitação em um gênero. Embora seja considerado hoje como um primeiro “filme-ensaio”, até então não se conhecia esta noção, que Jean-Luc Godard, por exemplo, irá empregar mais à frente. Ele também deu início ao gênero mockumentary, espécie de documentário falso que brinca com dados verídicos, recorrente a partir dos anos 90. Adalberto também chamou atenção para as ressonâncias do filme com o que será posteriormente a influência das características do vídeo no cinema (elementos para os quais vão se voltar cineastas como Godard e Antonioni), sua liberdade de criação e edição, ao mesmo tempo em que dava os primeiros passos para colocar em cena um tipo de filme muito presente e discutido no mundo contemporâneo, o filme de arquivo. Foi comentada a proximidade do filme com a obra de Lewis Carroll, autor de Alice no país das maravilhas, pelo fato de o filme se sustentar sobre a figura do paradoxo, apresentando uma superfície (a discussão sobre a falsificação no mundo das artes plásticas) que se desdobra em infinitas dimensões (quando sugere discussões sobre os paradoxos da verdade e da mentira, a partir de um viés mais filosófico).

O aspecto político do fazer artístico também é um dos pontos fundamentais para os quais Orson Welles chama atenção no filme. A indústria do cinema, especialmente Hollywood, com seu processo fascista de produção, acaba restringindo e escamoteando as possibilidades da experiência cinematográfica, cuja origem se associa a uma dimensão mágica. Apesar de a indústria escamotear a magia do cinema quando prioriza o mercado, Welles nunca abandonou esta dimensão, ciente de que ela pode dar acesso a outras formas de experimentar o mundo. Daí sua insistência, com Verdades e mentiras, na positivação do aspecto do falso, da ilusão, na potência criativa de ressignificar as coisas e o mundo. Welles dialoga com processos em voga hoje no mundo digital e na arte contemporânea, quando eleva a apropriação do material alheio ao estatuto de arte. Deste modo, desloca-se também a questão da autoria, a ideia de criação artística associada à figura do gênio, ao isolamento. O filme nos convida a pensar a arte situada na criação coletiva, implicando em uma democratização do pensamento e dos processos a partir do qual se produz e se experimenta a obra.

No mundo de imagens em que vivemos, a verdade é menos importante do que a ilusão de verdade, do que seu efeito. Portanto, a tarefa que se configura seria pensar muito mais nos efeitos de verdade do que nas verdades, em como são produzidos certos efeitos de verdade. Eis a lição política de Orson Welles. A discussão trazida em nosso encerramento de temporada não poderia ser mais adequada: ela também dialoga com muitas das conversas que tivemos em nossas sessões ao longo do ano, que nos fizeram pensar, com os filmes, sobre as maneiras pelas quais determinadas verdades são construídas, o modo como determinados conhecimentos são gerados e a forma como afetam nossa relação com o mundo. Nos vemos na sessão inaugural da próxima temporada, no dia 2 de março de 2013! Fiquem ligados no blog para uma retrospectiva da temporada 2012, para notícias sobre nosso próximo livro e para as atualizações da nossa programação. A equipe deseja a todos um feliz ano novo!




segunda-feira, 26 de novembro de 2012

V de falso



Como pode uma mentira ser sincera? Este paradoxo está presente em Verdades e mentiras (F for Fake), filme de Orson Welles que será apresentado no próximo sábado, 1º de dezembro, no Ciência em Foco. Após o filme, será realizada a palestra F de Falso: o autor e seus duplos, com Adalberto Müller, professor de Teoria Literária e Cinema e Literatura da UFF.

O último longa metragem de Orson Welles gira em torno do pintor e falsificador húngaro Elmyr de Hory (1906-1976) e seu biógrafo Clifford Irving, que teria falsificado uma biografia de Howard Hughes (excêntrico milionário americano) na década de 1970. Seria o falsificador de quadros também um artista?, pergunta Welles a partir deste documentário, uma vez que replica obras em que mesmo os autores dos quadros não distinguem o verdadeiro do falso. Welles também recorda, durante o filme, o célebre programa de rádio War of the Worlds, no qual, em 1938, “informou” sobre uma invasão de marcianos – história que é recontada com algumas “falsificações”.

Adalberto Müller argumenta que em Verdades e mentiras, uma espécie de filme-testamento, Orson Welles questiona valores tradicionais da arte, como autoria, autenticidade e originalidade. “O filme-ensaio de Welles pode ser um documento importante para se pensar a arte contemporânea e o mundo das aparências digitais”, destaca o professor da UFF.

Com cenas rodadas na Itália, França, Espanha e Estados Unidos, o filme tem em seu elenco Oja Kodar (atriz croata e namorada de Welles) e o próprio Welles, que elaborou o roteiro repleto de armadilhas, revelando com(o) sinceridade muitas das ilusões que o cinema permite tramar.

Venha para cá se confundir, ou se achar!

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A jornada (e a emoção) do conhecimento humano


No primeiro sábado de novembro, dia 03, aconteceu a penúltima sessão de 2012 do Ciência em Foco, com a exibição do clássico 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, seguido da palestra Parmênides e a luz do luar, ministrada pelo professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, Fernando Santoro. A jornada mostrada no filme, trazida à tela por Kubrick e Arthur C. Clarke, descreve a busca de respostas que poderiam ressignificar o lugar da humanidade no universo. Embora ambientada em um futuro próximo, a odisseia nos remete também à aurora do pensamento filosófico, ligada aos primeiros esforços no caminho de um conhecimento da natureza. Esta jornada serviu de inspiração e pontapé inicial para as reflexões de Santoro, centradas no primeiro testemunho do conhecimento científico de que a luz do luar não pertence à lua. Ao conjugar poesia, ciência e filosofia, 2001 desenvolve certas ideias que criam ressonâncias com a expressão poética de Parmênides.

A primeira ideia fundamental do filme, apontada por Santoro, é a de um salto epistemológico que pode ser percebido em determinados pontos-chave do filme. O primeiro destes saltos foi ilustrado na cena em que o primata joga um osso no ar, após utilizá-lo pela primeira vez como um instrumento. Por meio de um corte, o osso no ar se transforma em uma espaçonave, milhares de anos no futuro. O filme é pontuado por cenas que ilustram este salto, nos apresentando momentos de transformação do conhecimento e da experiência humana. Outra ideia levantada por Santoro é a da importância e relevância da lua no filme, que se relaciona com o fato da imagem da lua se associar com uma série de enigmas que movimentaram a curiosidade humana. A terceira ideia é a da função da luz na imagem constituída da lua e dos planetas no filme, cuja expressão artística se traduz em um diálogo com a questão do conhecimento da própria substância da luz presente na luz do luar. Em sua apresentação, Santoro também destacou a presença de prazeres e emoções inerentes a determinados momentos da atividade científica, ao ofício do pesquisador. Expressar a força destes prazeres e emoções seria um modo de tornar poético o conhecimento científico.

Uma expressão desta magnitude pode ser encontrada em um dos mais belos versos da poesia grega, trazido por Santoro, que se fez a partir de uma emoção associada ao conhecimento da natureza. Trata-se de um único verso do poema Da Natureza, de Parmênides, citado por Plutarco: "Brilho noturno de luz alheia vagando em torno à terra." Santoro propôs um retorno a um tempo em que o conhecimento, por exemplo, de que a lua reflete a luz do Sol, não era ainda um conhecimento banalizado. Um tempo em que o homem, imerso em um cenário povoado por deuses e compromissos sagrados, efetuava um corajoso salto para um tipo de conhecimento que se voltava aos processos naturais, como o percurso dos astros celestes e as sucessões das estações do ano. Em suas colocações, Santoro comentou a banalização do conhecimento que resulta no esquecimento daquelas emoções do pesquisador diante do que se dá a conhecer, associando-a à perda de um dos mais fundamentais aspectos da pesquisa científica: o reconhecimento da importância do não-saber como possibilidade de se alcançar uma experiência autêntica com o saber e a verdade.

Poderia a experiência de conhecer trazida por Parmênides ser ainda hoje experimentada como algo não banal? Estranha-se, nos tempos atuais, que um poema possa apresentar a natureza do mundo no lugar de uma demonstração teórica, do mesmo modo que seria estranho, na época de Parmênides, apresentar uma verdade nos moldes de uma demonstração, e não como revelação. As duas formas de conhecer, por demonstração e revelação, se cruzam no poema, que não apenas nos apresenta uma verdade astronômica, mas também nos revela o engano provocado pelas aparências, indicando o caminho da reflexão para se alcançar o conhecimento verdadeiro. O verso também carrega uma verdade própria à poesia, quando sua construção remete à verdade dos processos naturais, já que a expressão "brilho noturno" não se refere à lua, mas à própria luz. Deste modo, a própria "lua" se oculta no verso, não está aparente, revelando pela poesia que a luz do luar não provém dela, mas de sua errância em torno da Terra. Esta seria uma bela ressonância poética com uma das cenas mais espantosas do filme 2001, da criança-estrela vagando em torno do planeta: a transformação operada pelo conhecimento é sempre tributária da errância, da reflexão e da meditação que, por meio de comparações e a partir do raciocínio, consegue se acercar das razões da natureza sensível.

Nossa próxima sessão - a última da temporada 2012 - acontecerá no dia 1º de dezembro. Teremos um encerramento de ano memorável, exibindo um dos últimos filmes de Orson Welles, Verdades e mentiras (F for Fake - 1973). Teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Adalberto Müller, doutor em Letras pela USP, pós­‐doutor pela Universidade de Münster, Alemanha, professor de Teoria da Literatura e Cinema e Literatura da UFF. Ele apresentará a palestra F de Falso: o autor e seus duplos. Anotem na agenda, compartilhem pelas redes sociais (como o Twitter e o Facebook) e divulguem para os amigos. A entrada é franca. Até lá!




quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Que clima é esse?

Aperte os cintos! Em alguns segundos, você vai seguir viagem até um lugar familiarmente distante – e árido. À bordo, o professor e pesquisador da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da ECO-UFRJ Renzo Taddei, com a palestra “O clima em nossas histórias e nossas histórias sobre o clima”. Vamos?

Clique abaixo para ouvir a palestra (105min.) ou baixe aqui o arquivo zipado (95MB).






terça-feira, 16 de outubro de 2012

Para onde caminha a humanidade?




Assistir a uma obra-prima da ficção científica. Este é o convite do Ciência em Foco de 3 de novembro. O filme de Stanley Kubrick (que escreveu o roteiro juntamente com Arthur C. Clarke) data de 1968, porém conserva até hoje sua enigmática atualidade. Talvez, por isso, a palestra a ser realizada pelo professor da UFRJ Fernando Santoro, após a exibição, faça referência a Parmênides, filósofo grego nascido em 530 a.C..

Para Fernando, os versos atribuídos ao filósofo da cidade de Eleia – “Brilho noturno de luz alheia vagando em torno à Terra” – aparecem como o testemunho mais antigo de conhecimento científico do fenômeno da projeção solar em outro corpo celeste, cuja peculiaridade está em obter pela reflexão do pensamento um resultado totalmente diverso do que nos oferecem as aparências. Em 2001: uma odisseia no espaço está o desafio em compreender para além das aparências o sentido da própria evolução humana.

Sob o argumento de estabelecer contato com um fabuloso monólito negro que parece emitir sinais de outra civilização, uma equipe de astronautas, liderada pelos experientes David Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood), é enviada à Júpiter. Há, porém, outro tripulante na nave Discovery: o computador HAL9000, que controla a missão e dialoga com a tripulação, até o momento em que planeja exterminá-la. Sua dimensão de máquina em constante aprendizado lhe oferece o pior dos sentimentos: o medo da morte ou, em contrapartida, a avidez por conhecer o próprio sentido da existência.

Na trilha sonora, a inesquecível valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss II, e o famoso poema sinfônico de Richard Strauss, Assim Falou Zarathustra, acompanham como num balé os fabulosos saltos de conhecimento da humanidade desde a pré-história ao desconhecido futuro, traduzidos em imagens e efeitos visuais que valeram ao filme o Oscar de Melhor Efeitos Visuais. 

Imperdível!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O anonimato e a afirmação do inapreensível


A sessão do último sábado do Ciência em Foco apresentou o filme Santiago (2007), de João Moreira Salles, seguido da palestra de Luis Antonio Baptista. O professor titular do Departamento de Psicologia da UFF esmiuçou o que ele havia chamado, no título de sua palestra, de uma 'ética do anônimo', começando sua fala com um esclarecimento metodológico: apesar de ser psicólogo e atuar, no meio acadêmico, com a psicologia, seu interesse no cinema não se reporta à utilização dos filmes como instrumentos capazes de ilustrar determinados conceitos e teorias. Em seu lugar, busca-se utilizá-los com a perspectiva de provocar interrogações e inquietações que movimentem elementos teóricos de seu campo de pesquisa. Para ele, o cinema é capaz de transfigurar o real na medida em que provoca o estranhamento - mais que o entretenimento - , anunciando-nos novos modos de olhar o mundo e a nós mesmos. Com relação ao cinema documentário, o que estaria em jogo? Luis afastou a restrição das características do documentário à mera informação de um fato ou denúncia de uma realidade. Se o documentário permanece neste registro, limitam-se as possibilidades inventivas que são próprias aos modos de produção do filme, suas apostas estéticas, que não se referem somente ao objeto ao qual se quer direcionar a atenção.

Santiago é um filme que escapa ao modelo de um documentário confessional, deslocando e destruindo  fronteiras daquilo que se poderia imaginar ser o espaço próprio ao diretor e ao de seu então mordomo. Devido aos seus procedimentos estéticos, com sua montagens e na retomada do filme anteriormente inacabado de Salles, aos poucos vão se construindo novas fronteiras e outras espacialidades nas relações até então colocadas, que adquirem outras configurações. Para Luis, a beleza do documentário estaria neste deslocamento e rearranjo das fronteiras entre Eu/Outro. Para fundamentar uma ética subjacente a esta proposta, Luis comentou algumas ideias do filósofo francês Michel Foucault, publicadas em um prefácio para o livro Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No texto, que completou 40 anos em 2012, Foucault caracteriza o que chamou de vida fascista, uma noção que desloca certas características do fascismo de sua pontualidade na História, ampliando-as para salientar ameaças e perigos atuais relacionados aos modos de vida das pessoas e das instituições, quando somos levados a desejar determinadas configurações de poder que exploram a vida, limitando suas potencialidades. A consequência política deste cenário, influindo diretamente sobre o corpo e o desejo, é o risco de se entender o outro, a diferença, como algo que deve ser tolerado, destituído de sua capacidade de oferecer estranhamento ou ameaça. Santiago poderia ser lido, segundo Luis, como um alegre fracasso de uma tentativa de purificação ou elevação espiritual. O pretenso jogo de mea culpa do diretor é invadido por elementos casuais que instauram algo da ordem do imponderável, interferindo no modo como ele próprio - o diretor - percebe o outro a quem filma, e a si mesmo.

Adentrando a questão da potência do anonimato, Luis Antonio salientou o perigo inerente à noção de confissão: a palavra implica em uma lógica binária do Bem/Mal, que pressupõe um pecado, uma falta. As práticas confessionais, com toda a força de sua tradição, reforçariam a busca por uma natureza essencial do Eu, quando se acredita expor algum tipo de verdade associada à vida de uma pessoa. O filme de João Moreira Salles, na leitura de Luis, coloca em cheque o Eu "confessor" e seu protagonismo, apostando na procura do anônimo quando desconfia da soberania do Eu. Na fragmentação do filme e dos anseios do diretor, abre-se o espaço para que o inominável venha perturbar o conforto das definições tidas como sólidas. Portanto, uma ética do anônimo seria definida por sua referência ao transtorno provocado pelo indefinido, pela potência impessoal que arrebata as nossas expectativas, fazendo com que o contato com a alteridade, com a diferença, seja uma forma de reavaliação e refabricação de si mesmo. Referindo-se ao filósofo e crítico literário Maurice Blanchot, Luis Antonio apresentou sua distinção entre a forma do diário e a forma narrativa. O diário, como um gênero literário, se aferra ao calendário, aos sentimentos e às vigilâncias do eu sobre sua própria vida, na busca de uma definição de si mesmo. A narrativa, diferentemente, enquanto parece narrar ou representar determinada realidade, está de fato nos trazendo aquele próprio acontecimento que narra, sua vivência para aquele que lê.

Santiago, que poderia ser confundido com uma espécia de diário de João Moreira Salles, na verdade apresenta características narrativas na medida em que pode ser tomado por um acontecimento, quando se permite, por meio da montagem e da fragmentação, trazer não uma pretensa verdade sobre seu mordomo, mas chamar atenção para os próprios procedimentos de confecção e montagem de verdades. Luis Antonio considera o ato de fragmentar como um grande legado ético do cinema para os que procuram refletir sobre a existência humana. Tendemos a fazer de nossa vida uma grande continuidade em constante aperfeiçoamento, em busca de uma completude diante da qual qualquer distúrbio ou interrupção seriam encarados como potenciais motivos de frustração. O ato de fragmentar traz a perspectiva do desvio, abrindo espaço para infinitas possibilidades de existência. Em sua conclusão, comentando a cena do filme Tokyo Story (1953), de Yasujiro Ozu - utilizada por Salles no filme -, Luis Antonio chamou atenção para o risco de se frustrar com o fracasso e a decepção que advêm quando são traídas as nossas promessas de felicidade, sempre correspondentes a apostas prévias em determinadas verdades. No caso do filme, a aposta ética de incorporar o fracasso da busca de um sentido daquilo que seria uma verdade de Santiago - ou de seu diretor - é também responsável por sua beleza. O funcionamento da ética do anônimo mostraria, antes, a beleza e a alegria do entendimento da vida como decepção, já que não se vislumbra a perspectiva da linearidade, da continuidade e do sucesso, mas a afirmação do inapreensível.

Nossa próxima sessão acontecerá no dia 3 de novembro, logo após o feriado do dia 2. Exibiremos o filme 2001: uma odisseia no espaço (2001: a space odyssey - E.U.A./Reino Unido, 1968), clássico de Stanley Kubrick e um dos maiores ícones da história do cinema e da ficção científica. Após o filme, teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Fernando Santoro, professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, doutor em Filosofia pela UFRJ, pós-doutor pela Universidade de Paris IV e coordenador do Laboratório OUSIA de Estudos em Filosofia Clássica. Ele apresentará a palestra Parmênides e a luz do luar. Anotem na agenda e divulguem! Esperamos por vocês. Até lá!




quarta-feira, 3 de outubro de 2012

(des)conhecendo o outro

Mais um podcast saindo do forno! No encontro de maio, o professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, Cezar Migliorin, discutiu sobre a complexidade da relação com o outro mediada pelo cinema, após a exibição de As hiper mulheres. Aproveite!

Clique abaixo para ouvir a palestra (72min.) ou baixe aqui o arquivo zipado (67MB).






terça-feira, 25 de setembro de 2012

Quem é o outro em você?




O documentário sobre Santiago, mordomo da família Moreira Salles, feito por João Moreira Salles, é um ato de delicada confissão pública de desrespeito e afeto, de homenagem deslocada do tempo. O principal foco do documentário, a instigante pessoa de Santiago, é atravessado pelo obcecado resgate de memórias feito por João, que o teve como criado em sua infância na casa da Gávea, hoje sede do Instituto Moreira Salles.
As imagens foram captadas em 1992 e o “protagonista” falece logo após, jamais assistindo ao resultado. Santiago é povoado de lembranças que falam de seu hobby de escrever resumos biográficos sobre a aristocracia de vários lugares e tempos históricos, em flagrante contraste com o diminuto apartamento onde mora, tão diverso da mansão da Gávea, onde até as maçanetas das portas foram especialmente fundidas segundo o desejo de seus donos.
A projeção será seguida pela palestra “A ética do anônimo”, com o professor da UFF Luis Antônio Baptista, convidado de Ciência em Foco de outubro. Ele assinala que nesta obra, “os constrangimentos do falar sobre o outro, ou pelo outro, da tolerância ao diverso são postos a prova através da cortante presença da alteridade.”

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Todos a bordo da Sessão Corsário

Prepare-se para um início de semana memorável. Nesta segunda-feira, dia 24/09, mais um cineclube inicia suas atividades no Rio de Janeiro. Trata-se da Sessão Corsário, uma parceria dos membros do Cinerama, da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ) com membros do CinePUC, da PUC-Rio. Buscando promover o acesso a relevantes obras da cinematografia brasileira, a Sessão Corsário se pretende um local de estímulo à reflexão e à experiência compartilhada do cinema.

Com as telas do circuito comercial sendo invadidas por amostras de um cinema brasileiro cada vez mais vinculado ao mercado e à indústria, um espaço como o do cineclube toma de assalto as telas para ressignificar a experiência das imagens e retomar suas potencialidades, indo ao encontro de uma demanda por vivências audiovisuais outras, capazes de nos provocar e questionar. Um detalhe: os filmes são exibidos em seu formato original.

A sessão inaugural começa às 19h, no Cine Cândido Mendes, em Ipanema (na rua Joana Angélica, 63). Será exibido o longa-metragem Ladrões de cinema (Brasil, 1977), de Fernando Coni Campos, e também o curta inédito no Rio, Não dê ouvidos a eles (Brasil, 2012), de Leonardo Esteves. Após os filmes, convidados conversam com o público, como o ator Milton Gonçalves, um dos protagonistas de Ladrões de cinema. Os ingressos saem a R$ 5,00. Maiores detalhes podem ser encontrados no flyer eletrônico abaixo, ou na página da Sessão Corsário no Facebook.

Celebremos a estreia de mais uma iniciativa cineclubista na cidade. Uma boa sessão, e uma boa semana a todos!


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Sessão para professores no Cineclube Educação, em Ipanema


Mais uma iniciativa envolvendo cinema e educação abre suas portas no Rio de Janeiro. Trata-se do Cineclube Educação - viajando com o cinema, projeto que conta com a curadoria do Cineduc, e acontecerá a partir deste mês de setembro no Oi Futuro Ipanema. Não somente alunos da rede pública, particular e de projetos sociais poderão assistir a importantes filmes, apresentados por especialistas do Cineduc, mas também os professores contarão com sessões exclusivas, sempre seguidas de debates com convidados.

A primeira sessão mensal para professores acontecerá na terça-feira, 18 de setembro, com a exibição do filme O palhaço, segundo longa-metragem dirigido por Selton Mello, que também interpreta o papel-título. A sessão é gratuita para professores, sujeita à lotação da sala, que conta com a capacidade de 120 lugares. O Oi Futuro Ipanema fica na rua Visconde de Pirajá, 54, em Ipanema.

Para maiores informações, visite o site do Cineduc, e também sua página no Facebook. Boa sessão, e uma boa semana!

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Novos complexos de super-homem

Mais um podcast pra você degustar! Quem conduz a palestra de hoje, “Do cultivo da interioridade à biorregulação da experiência”, é o professor do instituto de Medicina Social da UERJ, Benilton Bezerra Junior. A conversa tem como ponto de partida o filme Sem Limites. Aperte os cintos e vamos lá!

Clique abaixo para ouvir a palestra (120min.) ou baixe aqui o arquivo zipado (109MB).






quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Do onirismo pop à ontologia onírica


No último sábado, o Ciência em Foco abriu suas portas para o mundo dos sonhos, com a exibição de A origem (Inception) seguido da palestra Sonhos & Ação! O onirismo pop de Christopher Nolan, por Nelson Job, doutor e pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ. O público compareceu em peso para ouvir e debater questões que evocam uma verdadeira viagem por diversas áreas do conhecimento. De início, Nelson ressaltou o fato de Christopher Nolan ser um dos poucos diretores atuais capazes de articular um cinema blockbuster, permeado de cenas de ação, com um cinema autoral, incorporando em seus filmes alguma produção conceitual que estimula o pensamento. Foram comentadas as influências cinematográficas do diretor, dentre as quais estavam incluídos alguns filmes que já foram discutidos no Ciência em Foco, como Blade Runner e Cidade das sombras. Alguns elementos de A origem podem ser percebidos como citações mais explícitas de seu diretor, como o modelo da escada de Penrose, que inspirou o artista M. C. Escher que, por sua vez, é uma inspiração direta para a construção de várias outras cenas do filme. Outra referência pode ser encontrada na mitologia: o fio de Ariadne que ajuda Teseu a escapar do labirinto do minotauro. Ariadne fornece o nome para uma das personagens-chave do filme. Diversas referências e citações foram apontadas na cultura pop, na história da ciência, na filosofia e na arte. Após fazer um panorama da obra de Nolan e comentar as características de todos os seus filmes, a palestra adentrou o universo onírico presente em A origem.

Nelson nos apresentou a noção de ontologia onírica, que trata dos níveis da realidade e a relação dos sonhos com a realidade. Foi feito um panorama histórico da noção de sonhabilidade do mundo, no qual foram comentadas as perspectivas do hinduísmo - que considera o mundo como um sonho de Deus -, a do taoísmo - que incorpora o sonho na realidade - e as do xamanismo e da magia em geral, que movimentaram, no século XX, os interesses, por exemplo, da literatura de Carlos Castañeda e seus diversos níveis do sonhar, como também dos estudos da antropologia e suas pesquisas de campo com xamãs e experiências do êxtase. Ao longo da história, o que se percebe é uma perda de importância atribuída ao sonho, para a qual diversas causas foram apontadas, dentre elas a perseguição aos profetas e intérpretes oníricos pela Igreja - o que teria contribuído para uma compreensão negativa do sonho. No entanto, o detalhe que parece mais importante é a mudança operada no conceito de linguagem a partir do século XVII. Até então, entendia-se a linguagem a partir da conexão entre as palavras e as coisas, entre o que dizemos e a realidade a que nos referimos. Esta relação - que legitimava, por exemplo, a conjuração mágica - se desfez e deu lugar à noção de representação, a partir da qual a palavra perdeu sua continuidade ontológica com as coisas, sua relação direta com a realidade a que antes se referia.

Com  isso, começaram a aparecer diversas outras separações lá onde não havia antes, favorecendo o surgimento de dualidades: entre natureza e cultura; entre sujeito e objeto; entre conteúdo e expressão; entre sonho e realidade. Impulsionado pela filosofia de Descartes, o próprio pensamento passou a ser compreendido de forma dualista, na qual o corpo e a mente possuem naturezas distintas. Neste cenário, o sonho passou a ter cada vez menos relevância e realidade. Apenas no século XIX os sonhos recuperaram sua seriedade, a partir do debate científico e filosófico trazido por Sigmund Freud. Porém, os sonhos eram abordados a partir de seu aspecto representativo: eles não eram considerados em si, mas enquanto representações de outros conteúdos. Nelson enumerou diversos pensadores que passaram a investir suas pesquisas para além da representação dos sonhos, rumo à sua assimilação na realidade. Foram citados Carl Jung -  quem chamou atenção para a questão da assimilação dos sonhos, embora seu sistema tenha permanecido no aspecto interpretativo -, Félix Guattari, que operou uma crítica a Freud atentando para a distribuição de elementos oníricos pelos mais variados aspectos da vida -, e finalmente María Zambrano, que considera a magia como uma primeira tentativa da Humanidade no sentido da concretização e da realização de sonhos. Diante destes desdobramentos, Nelson lançou uma indagação: não seria todo exercício da Humanidade uma tentativa de trazer os sonhos à realidade?

Uma referência filosófica à qual A origem se mostra bastante fiel é o cone da memória, um esquema proposto por Henri Bergson no final do século XIX, em sua obra Matéria e memória. A dimensão virtual do tempo é representada pelo cone que se expande, desde o presente - seu vértice -, dando acesso ao atemporal, à totalidade dos tempos. Este movimento corresponde à temporalidade vivenciada pelos personagens do filme, para os quais o tempo se alarga a cada nível mais profundo do sonho. Nelson também comentou ressonâncias das questões abordadas pelo filme com pesquisas da física do século XX, como o conceito de emaranhamento quântico, e as posteriores especulações de Roger Penrose em torno de uma consciência quântica, que favorece a relação de nossas mentes até mesmo com outras partes do universo. Seriam os sonhos uma espécie de jornada cósmica?

Com as múltiplas questões do público, o debate se estendeu aprofundando alguns temas discutidos e trazendo novas questões. Eis uma prova de que o labirinto de A origem pode nos deixar alegremente emaranhados no fio de Ariadne, diante de um inesgotável manancial de possibilidades a serem discutidas. Para continuar a discussão, não deixe de visitar o blog Cosmos e Consciência, editado pelo Nelson Job, e também um artigo publicado por ele na revista Cosmos e Contexto. Nossa próxima sessão acontece no dia 6 de outubro de 2012, o primeiro sábado de outubro, com a exibição do filme Santiago (2007), de João Moreira Salles. Teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Luis Antonio Baptista, psicólogo e professor titular do Departamento de Psicologia da UFF, com a palestra A ética do anônimo. Baptista é doutor em Psicologia pela USP e pós-doutor pela Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma 'La Sapienza'. Anote na agenda e divulgue! Até lá!









sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Não é sonho, é amanhã!

"Os sonhos parecem reais enquanto participamos deles, não é mesmo? Apenas quando acordamos nos damos conta de que algo estranho aconteceu." A frase é do personagem Cobb, interpretado por Leonardo Di Caprio em A origem (Inception - E.U.A., 2011), filme escrito e dirigido por Christopher Nolan.

De algum modo, a frase nos abre questionamentos em diversos níveis, assim como os níveis de sonhos mostrados no filme: em um nível, ela nos faz pensar sobre as fronteiras e delimitações entre o sonho e a realidade; em outro, questionamos os parâmetros que utilizamos para fundamentar nossa própria realidade, quando nos damos conta da naturalidade com que vivenciávamos a estranheza dos sonhos.

Neste sábado, não perca a oportunidade de assistir ao filme na sessão de setembro do Ciência em Foco, seguido de uma palestra e debate com o psicólogo Nelson Job, doutor e pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ. Analisando questões do filme e também elementos da obra de Christopher Nolan, Nelson explorará o universo pop e onírico criado pelo diretor.

Caso ainda não tenha lido, uma entrevista com nosso convidado pode ser acessada aqui. Saiba mais sobre a filme e a sessão aqui.

Venha participar e divulgue! A entrada é franca.




segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Clássicos do Senegal no Cinemaison


Nesta segunda-feira, 27/08, o cinema do Senegal é destaque em sessão dupla no Cinemaison, cineclube ligado à embaixada da França no Rio de Janeiro. Serão exibidos dois clássicos filmes do país, inéditos no Brasil e representativos da importante contribuição senegalesa ao cenário do cinema africano. Ambos foram selecionados para o festival de Cannes em seus respectivos anos.

A primeira sessão se inicia às 18h com Hienas (Hyènes, 1992), do reverenciado diretor Djibril Diop Manbéti, que se vale da peça suíça A visita da velha senhora projetada sobre a história e a realidade senegalesa. Logo após, às 20h, o cineclube exibe o documentário Fad'Jal (1979), de Sofie Faye. Primeira realizadora da África subsaariana, Sofie filma em seu povoado natal e destaca, no documentário, as oposições entre a tradição e a modernidade.

Aproveite a segunda-feira para embarcar nesta rara oportunidade de conhecer melhor o cinema do Senegal, travando contato com potentes registros da expressividade cinematográfica africana. A entrada é gratuita e o cadastro pode ser feito no site do Cinemaison. As sessões acontecem na rua Presidente Antônio Carlos, 58, no Centro do Rio. Informações pelo telefone (21) 3974-6644. Boas sessões!

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A realidade dos sonhos





"A palestra é acerca do sonhar ou vocês estão sonhando acerca de uma palestra?"


Nelson Job - pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ, psicólogo, editor do blog Cosmos e Consciência e palestrante do cineclube Ciência em Foco de setembro.


1) O diretor inglês Christopher Nolan conquistou um espaço de destaque no cinema mundial, com filmes que são igualmente sucessos de bilheteria e de crítica, e que fazem o público pensar. Seu último filme - o fechamento da trilogia do Batman - rendeu discussões políticas extensamente comentadas até mesmo por filósofos como Slavoj Ẑiẑek. Sua trajetória e as características de seus filmes favorecem comparações frequentes com Alfred Hitchcock. De que forma podemos compreender esta recepção de suas obras, bem como sua relevância para a época atual?

De uma forma geral, os comentários acerca da obra de Nolan são tendenciosos. O último Batman foi acusado de ser um filme "de direita". Acredito que o diretor apenas encaixou os personagens onde as temáticas contemporâneas que ele quis abordar se expressaram melhor. Quando o Coringa queima a montanha de dinheiro no Batman anterior se conclamando "o agente do caos", infiro um sorriso de soslaio do diretor naquela cena. Se Nolan fizesse um filme com os personagens do universo mutante dos X-Men, talvez Wolverine ganhasse contornos "de esquerda". Mas tudo isso é apenas um comentário acerca de análises dialéticas e ideológicas (que eu tento não fazer) em relação aos filmes. Já a comparação com Hitchcock é precisa, tanto no que diz respeito à obra de ambos terem desenvoltura nos quesitos "cinema autoral" e "blockbuster", mas também porque eles trazem experiências sensórias ao espectador para além da narrativa linear. No caso de Hithcock, o espectador é cúmplice do diretor ao "saber mais" que os personagens, gerando uma "borra" nos supostos limites entre obra, diretor e espectador. Nolan, por sua vez, propõe tempos e narrativas diferentes e coexistentes, como no caso de Amnésia e A Origem.

2) Por meio de uma narrativa que se inspira nos policiais e em elementos do film noir, A Origem apresenta uma visão ficcional para nosso universo dos sonhos, explorando de forma criativa suas potencialidades. Tema recorrente na história do cinema, os sonhos passaram a conquistar o interesse científico em uma época em que o próprio cinema surgia e florescia na Europa. Enquanto arte capaz de criar sonhos e realidades, de que modo relacionar a realidade criada pelos filmes - e pelos sonhos - com aquela sobre a qual atua a ciência?

Na virada do século XIX para o XX, a psicanálise teve o papel importante de recuperar modernamente o interesse pelos sonhos. Digo "modernamente" pois o termo implica algumas considerações relevantes de Bruno Latour. Em outras palavras, o ônus do sonho ter sido "sitiado" pela psicologia (em um sentido geral), ficando re(l/n)egado a um aspecto representacional, ou seja, o sonho não teria tanta importância em si, apenas no que ele "quer dizer", no que "está por trás" dos sonhos. Jung deu contribuições mais interessantes, pois retomou a questão de que o sonho deve ser assimilado, a despeito de sua técnica onírica ser ainda muito interpretativa. Já as filosofias de Henri Bergson e María Zambrano me permitem conceber o estatuto de ser dos sonhos, ou para usar os termos do meu campo conceitual, uma "ontologia onírica". A partir daí, recuperam-se concepções xamânica, taoísta, budista, hermética dos sonhos, aliadas a algumas teorias mais especulativas da ciência, como a do físico Roger Penrose (que são mais interessantes e profícuas que do que se observa hoje na maioria das concepções da neurociência), compondo, assim, um campo conceitual mais complexo e consistente para se conceber os sonhos atualmente.

3) À medida que adentram as camadas de um sonho, os personagens de A Origem passam a experimentar o tempo de forma diferente, e até mesmo duvidar da existência de sua realidade "original". Tanto neste quanto em outros filmes da obra de Nolan, os personagens se defrontam com conflitos que os fazem questionar sua existência, sua realidade e seu papel no mundo. Na época atual, diante da fugacidade de um tempo vinculado ao progresso contínuo, da pressa e da aceleração do ritmo e dos fluxos da vida, como abordar a forma como experimentamos o tempo, e como criar espaço para o questionamento?


Existem várias formas: particularmente sou entusiasta de uma articulação entre, de um lado, um estudo com ambições práticas, ou seja, a utilização de conceitos radicalmente transdisciplinares (um campo conceitual que envolve a filosofia e as outras ciências humanas, além da ciência, da arte e - por que não? - da magia) na vida e não apenas como recursos de peripécias intelectuais, racionais. De outro lado, entendo ser relevante um exercício para além das imagens, para além do tempo e espaço, como a meditação, apreendida em termos bem gerais, sem especificações, mas também sem restrições religiosas. Tanto o estudo e a meditação podem nos trazer reflexões e experiências relevantes acerca do(s) tempo(s) e do atemporal. Existem, é claro, as experiências com substâncias, em que é comum experimentar dilatações e contrações do tempo, mas essas podem ter muitos efeitos colaterais incontroláveis. As experiências com substâncias que podem ser mais eticamente realizadas são aquelas inseridas em um contexto ritualístico por algum tipo de xamã. De qualquer forma, a meditação não tem (ou ao menos tem muito menos) "efeitos colaterais", sendo muito mais recomendada. Em uma clínica psicológica, a experiência com o tempo e com a vida psíquica em geral é um problema bem mais delicado, pois o que se vê na prática é uma "conquista do imaginário" dos clientes ou "pacientes" pelos terapeutas: um inconsciente mais ou menos livre que chega a um consultório, na extrema maioria dos casos, é povoado quase imediatamente por (de acordo com as "crenças" do terapeuta) complexos, arquétipos, couraças etc. Tais "crenças" ou linhas de escola clínica têm a sua própria concepção de postura em relação ao tempo. Nenhuma corrente de pensamento está livre disso: se os esquizoanalistas (partidários das ideias - que muito me interessam - de Deleuze e Guattari) criticam os psicanalistas por colocarem o Édipo em todo mundo, podemos, por outro lado, criticar muitos dos esquizoanalistas por colocarem o rizoma no mundo todo. Hoje, cada vez menos utilizo, enquanto psicólogo, o recurso do consultório (muitas vezes entendido pelo cliente mais como o locus da lamúria e menos como o da transformação) e cada vez mais utilizo o dispositivo do grupo de estudos, não no estereótipo de grupo "terapêutico", e sim no sentido de criação coletiva de conceitos radicalmente transdisciplinares e práticos. Nesse sentido, ainda sou clínico, mas minhas "ferramentas" clínicas são os conceitos práticos, mas também sou um pensador e facilitador transdisciplinar. Tais ferramentas podem permitir uma apreensão do tempo, seja em que sentido for, um tanto relevantes, até mesmo radicais. Porém, em meus sonhos mais remotos, gostaria de me pensar como "personal dreamer", mas isso é outra história ou outro sonho...

4) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras.

- Consciência: A dobra da mente sobre si mesma.

- Sonho e imagem: O sonho é um tipo de imagem.

- Arte e pensamento: Ontologicamente inseparáveis.

- Real: Devir.

5) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.

Já citei vários autores e campos de conhecimento na entrevista. Acrescentaria: para uma relação consistente entre a filosofia de Deleuze e a ciência, o filósofo Manuel DeLanda; para uma relação sem estereótipos e exageros "nova era" entre a filosofia e a Mecânica Quântica, o médico anestesista Stuart Hameroff e para um estudo sério da influência do Hermetismo e alquimia na obra de Isaac Newton - e, por desdobramento, na ciência em geral - a historiadora da ciência Betty Jo Teeter Dobbs.

Vou deixar aqui o link do HCTE, ou o departamento de História da Ciência, das Técnicas e Epistemologia da UFRJ, hoje coordenado pelo matemático e poeta Ricardo Kubrusly, onde fiz meu mestrado, doutorado e faço meu pós-doutorado orientado e supervisionado pelo físico Luiz Pinguelli Rosa. Lá é possível fazer um estudo consistente, ousado e transdisciplinar no Rio de Janeiro: http://www.hcte.ufrj.br/

Cito uma frase do escritor Philip K. Dick: "A teoria modifica a realidade que descreve".

6) Como conhecer mais de suas produções?

Através dos meus blogs. Tem o "Cosmos e Consciência" que tende a ser mais conceitual: www.cosmoseconsciencia.blogspot.com.br e o "Druam" que tende a ser mais ficcional: www.druam.blogspot.com.br mas ambos são, inevitavelmente, complementares.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Só o que inventamos é real


O sonho é real? A dúvida é o mínimo admissível, depois que penetramos na emocionante realidade onírica produzida no filme A Origem (Inception), de Christopher Nolan, que será apresentado pelo Ciência em Foco, dia 1 de setembro.
A projeção será acompanhada da palestra Sonhos & Ação! - o onirismo pop de Christopher Nolan, realizada por Nelson Job, psicólogo, pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ). Para ele, a obra cinematográfica do cineasta britânico-americano é marcada por um raro traço, unindo um cinema autoral com uma estética blockbuster. “Desde seu Amnésia, passando pelas suas versões de Batman e culminando no espetacular A Origem, o diretor articula com inventividade peripécias heroicas com conceitos que fazem pensar”.

Em A Origem, Leonardo DiCaprio faz o papel de Dom Cobb, um ladrão especializado em extrair informações do inconsciente dos seus alvos durante o sonho. Incapaz de visitar seus filhos, Cobb tem a chance de vê-los em troca de um último trabalho: fazer uma inserção, plantar a origem de uma ideia na mente de um rival de seu cliente. O longa foi indicado a oito Oscars, incluindo Melhor Filme, vencendo em quatro categorias, Melhor Fotografia, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som.

A conversa sobre o temática do filme com Nelson Job se dará a partir da filosofia de Bergson e Deleuze: “investigaremos algumas das citações explícitas e ocultas nos filmes, desdobrando os filmes de Nolan, que em sua obra, realiza com singularidade o maior esplendor do cinema: evidenciar que o sonho é real”. Participe!

A cena está posta

O que o cinema e a gastronomia têm em comum? Se à primeira vista poderíamos considerá-los como práticas inconciliáveis, restritos a suas respectivas técnicas e modos de produção, não podemos ignorar a presença da comida ao longo da história da cinema, harmonizada em cena de diferentes maneiras, por meio de abordagens, estilos e propostas que enfatizam seus múltiplos aspectos.

A gastronomia e o cinema são domínios da experiência humana que se referem, antes de tudo, aos nossos sentidos. Podemos tratá-los como formas de arte, já que se servem de nossos sentidos para extrair deles possibilidades inesperadas, surpreendentes, combinando elementos que não apenas são capazes de saciar ou confortar, mas de oferecer uma intensificada experiência do mundo. A partir de amanhã, a Caixa Cultural do Rio de Janeiro recebe a mostra Filmes à mesa, um seleto panorama das formas pelas quais a comida é representada nas mais diversas narrativas cinematográficas.

Com a curadoria de Beth Jacob e Fernanda Teixeira, a mostra dura 12 dias e reúne seus 34 títulos em grupos temáticos inspirados em um cardápio de restaurante, cada um abordando características e estilos que correspondem às distintas formas de relação do homem com o alimento. Algumas sessões serão seguidas de degustações e palestras. Veja programação completa e aproveite a irresistível sinestesia que ela oferece. Quer receita melhor para se programar ao longo destas próximas duas semanas?

A Caixa Cultural fica na Av. Almirante Barroso, 25, no Centro do Rio, próximo à estação Carioca do metrô. Maiores informações aqui, e também no telefone (21) 3980-3815. Aproveite e assista à vinheta da mostra abaixo. Boa semana a todos!

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A escola entrincheirada

No ar, o podcast da palestra “Aprender e ensinar, exercícios de estrangeiridade”, do professor de filosofia da educação da UERJ Walter Kohan. O filme a disparar a discussão foi Entre os muros da escola, que revela os conflitos sociais, culturais e de raça dentro de uma instituição escolar na periferia de Paris. Imperdível!

Clique abaixo para ouvir a palestra Aprender e ensinar, exercícios de estrangeiridade (59min.). Ou baixe aqui o arquivo zipado (55MB).






terça-feira, 7 de agosto de 2012

O silêncio de um país inteiro


No último sábado, o Ciência em Foco exibiu o filme Corpo (2007), de Rossana Foglia e Rubens Rewald, seguido da palestra O corpo de todos nós, com a nossa convidada do mês, a doutora em psicanálise Maria Rita Kehl. Psicanalista e escritora, Rita ressaltou a força e a atualidade renovadas do filme, sobretudo tendo em vista sua integração à Comissão da Verdade, em maio deste ano. Abordando temas como o desaparecimento de pessoas na época da ditadura, Corpo projeta uma continuidade de certos procedimentos deste período da história recente na época atual. Rita Kehl focou sua análise do filme nos aspectos que caracterizam esta conexão. A partir da trajetória do personagem Arthur, cuja vida parece adquirir sentido quando passa a se importar com a busca da identidade do corpo encontrado, o filme nos envia à busca de um segredo mais terrível, cuja escala se amplia para abarcar a história recente do Brasil.

Embora a narrativa do filme esteja voltada para a resolução de um mistério envolvendo um corpo intacto encontrado entre as ossadas do período ditatorial, a ressonância que se cria é com a época atual, quando observamos uma indiferença generalizada - tanto política quanto da mídia -, com relação à violência institucional, às baixas não contabilizadas de mortes em decorrência de ações policiais, que afetam sobretudo aqueles que se encontram à margem da sociedade. São as camadas economicamente desfavorecidas da população que sofrem com esta indiferença. De acordo com Rita Kehl, a imagem do corpo intacto se apresenta como um elemento simbólico que funciona como metáfora desta situação, uma imagem que nos envia a outras formas de morte, como a da sensibilidade e a da solidariedade.

Rita Kehl se referiu a pesquisas mencionadas no livro O que resta da ditadura? [organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010]  que apresentam não apenas o Brasil como o único país da América Latina onde os assassinos e torturadores da época não foram punidos, como também apresentam dados que mostram o país como único no qual a polícia mata mais pessoas que durante todo o período. Muitos desses mortos atuais, pela condição desfavorável de suas famílias, permanecerão no anonimato, condenados ao silêncio e cada vez mais isolados da existência. O filme dialoga com este silêncio que não é pontual, mas que pertence a um país inteiro, quando faz alusão a práticas do período da ditadura: Rita Kehl comentou, como exemplo, a cena em que uma médica legista, na época atual, pede a seu subordinado para assinar o laudo de um óbito. Quando entra em cena a transferência de responsabilidade, o filme projeta a condição dos subordinados de hoje e sua ausência de voz.

Por meio do fluxo de suas imagens, o filme parece demonstrar um imaginário social abalado por um trauma, e as tentativas de resolução de um possível enigma, associado à memória dos desaparecidos políticos. A repetição do trauma aparece como uma das diversas formas de resolução deste enigma, e por isso nos defrontamos com a repetição da violência institucional no Brasil: a repetição de uma situação de exceção na qual o Estado se posiciona contra o povo, que se configura como uma reação a um trauma anterior ligado a uma violência que não foi reparada, punida, denunciada ou elaborada. Evocando a noção de melancolia do filósofo alemão Walter Benjamin, Rita Kehl comentou a prática do personagem Arthur de fazer diagnósticos do óbito das pessoas que observa no espaço urbano. Segundo ela, o personagem produz diagnósticos de melancolia, no sentido que o termo fora abordado por Benjamin, distanciando-se de seu sentido clínico. Para Benjamin, a melancolia se associa a um sintoma social que diz respeito à indolência instalada quando uma pessoa ou um povo traem sua história, sua tradição, sua origem, para aliar-se ao cortejo dos vencedores, àqueles que se encontram em uma posição superior. Hoje, quando a posição de vencedores não é mais ocupada pelos militares da ditadura, nos encontramos diante do cortejo da mercadoria e da economia predadora.

Tivemos um movimentado debate, no qual foram reverberadas inquietações atuais sobre a política e a história, enfatizando o cuidado necessário de se marcar a diferença entre o período totalitário e o período democrático atual. Agradecemos o apoio dos diretores do filme, e também à APILRJ - Associação de Profissionais Intérpretes de Libras do Rio de Janeiro. Nossa próxima sessão acontece no dia 1º de setembro, quando exibiremos o filme A origem (Inception - E.U.A., 2011), do diretor inglês Christopher Nolan. Como convidado do mês, teremos a honra e a alegria de contar com a participação de Nelson Job, psicólogo, pós-doutorando e doutor em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ. Ele apresentará a palestra Sonhos & Ação! O onirismo pop de Christopher Nolan. Esperamos por vocês!