quarta-feira, 22 de junho de 2011

Lucia, a ficção e o feminino

Conversa com Lucia de La Rocque, Doutora em Ciências Biológicas pelo IBCCF/UFRJ, pós-doutora na área de Antropologia, Gênero e Ciência pela UFRGS, pesquisadora do IOC/Fiocruz, professora de Literatura Inglesa da UERJ e palestrante do Ciência em Foco de 2 de julho.







"A ciência não corresponde a conjuntos de conhecimentos 'puros', mas a intrincadas relações de fatos, ideias, ideologias. É aí que a FC (ficção científica) feminista nos mostra: não existem escolhas simples nem puras, todo o tempo precisamos pensar de onde e como falamos para nos posicionarmos de maneira mais firme e honesta num mundo em que ninguém, na realidade, tem as respostas certas, mas cada vez mais perguntas".

1) Como começou a sua relação com o cinema?

Bom, meus pais adoravam cinema, e desde cedo me levavam junto. Durante muito tempo, eu dizia que o melhor filme que vira tinha sido O Grande Amor de Nossas Vidas. Vi com 6 anos (The Parent Trap, de 1961, com a Hayley Mills fazendo o papel das gêmeas que tentam unir os pais separados, papel desempenhado numa versão bem mais recente por Lindsay Lohan). Mas o grande filme da minha infância, e entre os maiores de toda a minha já longa vida, foi My Fair Lady (1964), eu deveria ter uns 9 anos, e fiquei encantada com a Audrey Hepburn, a música, tudo... Já gostava da língua inglesa, mas creio que foi a partir desse filme que decidi que iria me aprofundar na mesma... O encanto com a FC (ficção científica), tanto com a literária quanto a cinematográfica, chegou um pouco mais tarde. Nesse campo, assim como o da literatura vs cinema 'realista', meu primeiro impacto, no sentido fílmico, sucedeu ao literário, que se iniciou com a leitura das obras de Julio Verne, quando tinha mais ou menos 11, 12 anos. Mas quando assisti 2001, Uma Odisseia do Espaço (1968), aos 15, saí estonteada...

2) O conto da aia é uma adaptação do romance da Margaret Atwood pelo diretor alemão Volker Schlöndorff, um expoente do chamado 'novo cinema alemão', que tem como marca as adaptações de livros, como a do romance de Günter Grass, O tambor (um filme que lhe rendeu até mesmo o Oscar e a Palma de Ouro, em Cannes). De que maneira o filme se apropria do romance, ressignificando e potencializando suas questões?

Toda adaptação cinematográfica é, naturalmente, um recorte, uma visão que pode lembrar mais ou menos o livro. Digo isso porque justamente no momento estou lendo, com alunos do mestrado em Literaturas de Língua Inglesa da UERJ, I am Legend, um romance publicado por um americano, Richard Matheson, em 1954 e, como a leitura sucedeu o contato com a versão cinematográfica de 2007, fiquei pensando como o diretor, buscando o sucesso comercial, mudou aspectos essenciais do livro; a ponto de, a meu ver, criar uma história totalmente diferente, sendo que o romance é mil vezes mais instigante.

Meu filho de 15 anos diz o óbvio: "O livro é sempre muito melhor do que o filme". Sabemos que há a necessidade de adaptação de linguagens, o enquadramento das ideias em imagens concretas que, por vezes, frustram nossos voos imaginativos. Retornando ao nosso filme, diria que Schlöndorff, em minha opinião, foi mais feliz ao 'traduzir' o trabalho de Grass que o de Atwood; arriscaria até um lugar comum, ao especular sobre o sucesso se dever em parte à culturas mais próximas. O diretor de O conto da aia acerta a mão ao enfatizar a opressão sobre as mulheres, mas deixa muita coisa de lado, como não poderia deixar de ser. A ambiguidade da questão da censura (desejada pelas feministas contra a indústria pornográfica, o que é uma discussão no campo do feminismo) fica pouco explorada; uma outra falha é o final, muito mais happy end que o fim mais que incerto do romance. A fina ironia de Atwood, que atinge o seu ápice nas Notas Históricas ao final (que o filme deixou de lado) não passa, por essa e outras razões, bem para o filme. Talvez, nesse ponto, precisasse de um Woody Allen mais trágico para conseguir essa transposição...

3) O conto da aia, o livro, teve a honra de receber o primeiro prêmio Arthur C. Clarke, em 1987, que o distinguiu como melhor romance de ficção científica do ano anterior, no Reino Unido. De que forma, e a partir de quais linhas de força, as temáticas sociais ganham espaço na ficção científica?

O fato de o romance de Atwood ter ganho esse prêmio mostra o ganho de espaço, no campo da FC como um todo, da 'soft science fiction', que, como o próprio nome indica, tem mais a ver com as ciências 'moles', as ciências humanas - história, sociologia, psicologia - e não com as 'duras', mais tradicionalmente ligadas à ficção científica, como a biologia, a física e a química. A ascenção dos temas sociais no campo da ficção científica, que é um fato inquestionável e constante, é marcante a partir do contexto sociohistórico particularmente questionador e efervescente do final dos anos 60. Desde então, todas as questões que marcaram esse momento, citadas por Moylan (2000), como o movimento dos direitos civis, das minorias sexuais, o grito dos excluídos e as múltiplas vozes do feminismo, além dos questionamentos éticos sobre os poderes aparentemente ilimitados da tecno-ciência, questionamentos esses iniciados por Frankenstein de Mary Shelley, de 1818, vêm ganhando cada vez mais terreno no campo da FC, e se concretizando em obras como The Left Hand of Darkness (1969, de Ursula Le Guin), The Handmaid´s Tale (1985, de Margaret Atwood,) e Never Let Me Go (2006, de Kazuo Ishiguro).

4) Nas distopias, a extrapolação da realidade e o apelo à imaginação são algumas das características utilizadas pela ficção científica para denunciar tensões políticas e ideológicas nas sociedades. Como se insere, neste movimento, a crítica feminista? Como ela contribuiu – e segue contribuindo - para um questionamento do papel da ciência?

Como você bem diz, a extrapolação da realidade pela FC nas distopias faz com que nos afastemos do nosso próprio 'mundo real' o suficiente para questionarmos se a realidade alternativa que nos está sendo apresentada é assim tão, e como, diferente da nossa... Como diz meu 'guru' Moylan, o processo, no caso da FC de qualidade, é um 'escapismo' que nos faz pensar, e ainda segundo esse crítico, o questionamento mais contundente da época da 'virada' da FC acima mencionada, dos anos 60 e 70, veio da FC feminista. Esse tipo de literatura crítica se serviu dessas estratégias de afastamento para conduzir o leitor a indagações do tipo: qual é o papel da mulher na sociedade? Até que ponto o fato de a mulher, por mais que as coisas mudem, ser ainda a que engravida e amamenta, interfere na delimitação desse papel? O patriarcado é determinado pelo poder dos homens, mas de que forma a mulher contribui para manter, ou até mesmo incentivar a manutenção do mesmo? Questões como essas atravessam os campos de poder, nos quais a ciência se insere. A ciência não corresponde a conjuntos de conhecimentos 'puros', mas a intrincadas relações de fatos, ideias, ideologias. É aí que a FC feminista nos mostra: não existem escolhas simples nem puras, todo o tempo precisamos pensar de onde e como falamos para nos posicionarmos de maneira mais firme e honesta num mundo em que ninguém, na realidade, tem as respostas certas, mas cada vez mais perguntas.

5) Levando em conta as recentes conquistas, em um contexto global, de grupos e movimentos de minorias historicamente oprimidas, que conexões poderiam ser estabelecidas com as questões suscitadas pelo filme sobre o universo feminino?

As conquistas desses grupos são, como sabemos, não só o resultado da força sociohistórica e política desses grupos, mas de fortes interesses econômicos em jogo, ou seja, de alguma forma, interessa também a grupos hegemônicos que essas minorias de alguma forma ascendam. Assim, no caso das mulheres, era interessante economicamente, na propaganda dos anos 50, mostrá-las como anjos do lar, donas de casa perfeitas, sendo que hoje em dia muitas propagandas têm um teor 'feminista', buscando claramente uma fatia considerável do mercado, a de mulheres com total independência financeira. No caso do filme, que nesse ponto é bem fiel ao livro, esse aspecto socioeconômico é deixado de lado. O golpe que leva à República de Gilead não tem seus antecedentes bem explicados, o que poderia e foi de fato visto como um ponto fraco da obra. Atwood, no entanto, defendeu-se da pecha de criadora de uma sociedade alternativa por demais descolada das 'reais' dizendo que todas as atrocidades mencionadas no filme já ocorreram em tempos e lugares dispersos da história humana. Penso que respondeu bem, e que, para além disso, podemos pensar no que acontece como questões gerais, tipo, o poder das Tias, como elas se juntam ao opressor em vez de se posicionarem a favor das Aias, ou seja, a ânsia de poder sendo muito superior a qualquer lealdade de gênero. Outro ponto é que, no nosso mundo pós-moderno, temos casos em que mulheres oriundas do Terceiro mundo, ou simplesmente mais pobres, são utilizadas como mães de aluguel para casais prósperos com problemas de fertilidade, o que certamente ecoa de alguma forma nas práticas aviltantes de que as Aias participam no filme.

6)Em seu modo de ver, qual a importância de atividades como os cineclubes enquanto espaços de pensamento e divulgação científica?

São espaços preciosos, os filmes apresentam de forma impactante e rápida histórias que levariam dias (com o tempo curto de que dispomos, provavelmente meses...) para serem lidas. A despeito de tudo que disse acima sobre a decepção de ver uma história conhecida pela leitura filmada, os filmes atingem os sentidos de uma maneira imediata, envolvente, possibilitando justamente a união de pessoas interessadas em discussões acerca de temas contemporâneos, envolvendo filosofia, ética, enfim, ideal para constituírem esses espaços de pensamento e divulgação científica. Nunca desistam do Ciência em Foco: é uma iniciativa que deveria ser imitada e, principalmente, disseminada em escolas, associações de comunidades, enfim, lugares onde se pudesse estimular os jovens, principalmente os mais pobres e com menos acesso a filmes de qualidade em geral, a travar contato com este mundo de ideias trazidas pelo cinema.

Quem gostou da entrevista e quer conversar diretamente com a Lucia, é só escrever para: luroque@ioc.fiocruz.br









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