sexta-feira, 25 de maio de 2012

Mudando para que nada mude

"A exaustão dos recursos naturais não será resolvida enquanto os padrões de subjetividade ocidentais não forem incluídos como parte fundamental do problema. [...] A insatisfação crônica do cidadão ocidental, e a forma irresponsável com que se relaciona com as coisas [...] são coisas tão importantes quanto a discussão sobre matrizes energéticas".

Renzo Taddei - Doutor em Antropologia pela Univ. de Columbia, pesquisador da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da ECO-UFRJ e palestrante do Ciência em Foco de 2 de junho.
1) O personagem central do filme Árido Movie é um profissional que apresenta diariamente a previsão do tempo para o Brasil em uma rede de TV em São Paulo. Ao voltar para sua terra natal no sertão nordestino, ele se vê deslocado na fissura entre estes dois “nordestes”: o da previsão do tempo, distante e virtual, e o concreto. Diante dos vários contrastes com os quais se defronta, como podemos pensar seu deslocamento?

Essa fissura não se limita à questão do “nordeste”, mas é ainda mais importante, ainda que menos saliente, na própria questão do clima. Somos levados a crer todo o tempo que o clima que importa está em algum outro lugar, e que só é acessível através da mediação de especialistas e equipamentos. Obviamente isso ocorre de fato, mas há efeitos deletérios nessa alienação entre os indivíduos e o meio ambiente: a questão passa a ser entendida como problema distante, vivido apenas de forma abstrata. Isso gera a atitude caracterizada pela ideia de que “eu não tenho nada com isso” – o que é exatamente o que o personagem do filme diz à avó quando percebe que esta espera que ele vingue a morte do pai. De certa forma, ele vivia a sua própria relação familiar de forma alienada, como algo abstrato, virtual, e as contingências da vida o obrigam a enfrentar a incontornável materialidade dos contextos locais. A crise ambiental atual nos confronta com esta materialidade incontornável. Se o personagem vivesse as suas relações familiares de forma mais integral, talvez o destino de todos ali fosse outro. Há responsabilidades que nos implicam, mas que não escolhemos – algo difícil de aceitar no contexto liberal em que vivemos. Mas a analogia acaba por aqui: felizmente não há morte alguma a ser vingada na questão climática (ou haverá?).
2) O fenômeno climático da seca é recorrente na filmografia brasileira. Pode-se dizer que o cinema traz representações do meio ambiente que muitas vezes nos forçam a pensar seus elementos a partir de sua relação com a sociedade e a cultura. Sem entregar muito de sua fala, poderia comentar algo em torno desta relação? Qual a importância destas perspectivas e seu papel no cenário das discussões oficiais?
Mais do que a seca propriamente dita, o elemento que povoou a imaginação de escritores e artistas foi o “sertão”. Hoje, especialmente para as audiências do sudeste urbano, sertão é quase sinônimo de nordeste rural, mas no passado a situação era diferente. Há debates acadêmicos sobre de onde vem a palavra sertão: uma das hipóteses é que tem origem na palavra desertão, sugerindo a ideia de área remota e desolada; outra, sugere que a palavra vem de sertus, termo do latim que significa entrelaçado, enredado. Na história do Brasil, o sertão sempre foi o espaço refratário à penetração do poder oficial, das instituições de controle do Estado. Um dos lugares onde isso é mais claro é na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A obra se ambienta toda em Minas Gerais, em uma região que não é semiárida como o sertão nordestino, e numa época onde sequer existia o “Nordeste”, mas tudo o que ficava acima da Bahia era considerado “Norte”. No início, o Brasil todo era sertão; com a expansão do Estado ao longo do século XX, houve uma redução considerável do território que pode ser considerado sertão, nos sentidos mencionados acima: praticamente toda a região sudeste, por exemplo, se “dessertaniza” à medida que o espaço passa a ser ocupado por cidades e atividade agrícola em larga escala.

Desta forma, na imaginação artística o sertão funcionou, ao longo dos últimos dois séculos, como o “outro mundo” onde há liberdade em contraposição aos controles que marcam as sociedades urbanas, e onde há mais autenticidade, o que pode ser encarado por um viés romântico (como vemos em José de Alencar, por exemplo) ou onde coisas impensáveis podem ocorrer, numa espécie de mirada conradiana [referente a elementos da obra do escritor britânico Joseph Conrad (1857-1924), autor de Coração das trevas]. Mesmo com o Cinema Novo, onde há uma sociologização mais intensa do sertão, esse não deixa de ser espaço de liberdade e experimentação, como vemos em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Mas é preciso que se diga que isso tudo marca uma perspectiva de quem olha de fora. O sertão não é uma coisa, são muitas.


O que a seca faz, em certo sentido, é ressertanizar momentaneamente um território dessertanizado, porque ela tem o potencial de desorganizar processos políticos e sociais locais, inclusive no que diz respeito às instituições oficiais de poder. Em lugares onde as variações climáticas (como as secas) são recorrentes, como no nordeste brasileiro, em geral as relações de poder locais existem de forma associada às epidemias de sofrimento trazidas pela seca. A infame indústria da seca é um exemplo disso. Mas há limites em quanto as sociedades e instituições locais conseguem se ajustar à variação do clima: secas muito intensas podem efetivamente colocar toda uma sociedade em situação de crise, como se vê atualmente nos sertões de Pernambuco e da Bahia.

Um segundo ponto da questão menciona a forma como o cinema nos faz pensar o meio ambiente em sua relação com sociedade e cultura. Há duas formas de relacionar natureza e sociedade que parecem ser recorrentes na experiência humana. Por um lado, usamos elementos da natureza para pensar relações sociais, coisa que na antropologia chamamos de totemismo. A forma como usamos figuras de animais para pensar torcidas de futebol (urubu, gaviões, porco etc), ou como destacamentos militares usam símbolos animais (a onça em quartéis na Amazônia), ou ainda quando nos referimos a qualidades pessoais através de imagens animais (ao dizer que alguém “é” uma cobra, um rato, ou uma anta), são exemplos disso. Por outro, projetamos na natureza elementos humanos, culturais e sociais, o que, por sua vez, é conhecido na antropologia como animismo. Desta forma, uma tempestade é “traiçoeira”, ou uma estação chuvosa, como ouvi várias vezes em pesquisa de campo no sertão do Ceará, pode ser “velhaca” (isto é, promete e não cumpre). O cinema naturalmente se utiliza disso tudo como recurso narrativo.  
Além disso, nossa percepção do ambiente é visceralmente marcada por nossas perspectivas contextuais. Uma pesquisa que coordenei a respeito das respostas sociais e culturais às secas do ano de 2005 – um ano em que houve secas na Amazônia, no Nordeste e no sul do Brasil – mostrou que as populações locais não pensam o meio ambiente como algo desconectado das demais dimensões da vida; como tais dimensões são variáveis, a percepção do ambiente o é também. Os resultados da pesquisa foram publicados no livro Depois que a chuva não veio, disponível em texto integral na Internet. O problema é que os governos centrais, como o federal, no Brasil, têm a tendência a homogeneizar tudo com o qual se relacionam, ignorando os contextos locais; e a ciência climática tende a pregar que o contexto local e o clima não têm relação causal direta (especialmente quando estão contestando a capacidade do conhecimento tradicional de produzir previsões climáticas válidas). No que diz respeito às relações entre sociedade e clima, vivemos uma situação verdadeiramente neurótica. O meio ambiente pode inclusive ser uma forma de eufemizar uma discussão demasiadamente sensível em termos políticos e sociais. Um manual de infoativismo editado na Inglaterra, por exemplo, sugere que personagens em forma de animais sejam usados em campanhas públicas em que questões politicas sensíveis dificultem a comunicação através de exemplos humanos.
As discussões oficiais são, infelizmente, demasiadamente economicistas e unilineares, presas a um utilitarismo frustrante, para levar qualquer dessas questões a sério.
3) No mês de junho, o Rio de Janeiro sediará a Rio+20, a conferência das Nações Unidas em torno do desenvolvimento sustentável, que articulará líderes mundiais em discussões que convidam à cooperação mundial para a melhoria de problemas sociais. Tendo em vista o cenário de mudanças climáticas, como abordar a participação social nestas discussões, face às diferenças culturais que estão em jogo?

As diferenças culturais não devem ser entendidas como obstáculo às ações relacionadas à crise ambiental. Pelo contrário, são recursos importantes. É interessante observar como a biodiversidade é hipervalorizada, ao ponto de ser fetichizada, e ao mesmo tempo a diversidade de formas humanas de ser e estar no mundo é desvalorizada – por exemplo, quando se acredita, com as melhores intenções, que é preciso “educar” as pessoas que praticam queimadas para plantio, por exemplo, para que “entendam” os efeitos deletérios de algumas de suas práticas cotidianas. Projetamos o problema sobre os outros, sem perceber que esse nosso foco em informação e no pensamento, ou seja, ao diagnosticar tudo como “falta de informação” ou diferentes “formas de pensar”, é parte fundamental do problema. Tudo ficou cibernético demais, de forma que as questões morais e éticas nos escapam muito facilmente.
A ideia de que diferenças culturais dificultam a construção de um entendimento mundial sobre as questões ambientais em geral, e sobre a questão climática, em particular, me assusta. A própria ideia de “entendimento mundial” em torno do meio ambiente evoca perigosamente um centralismo pouco democrático. Nunca na história da humanidade houve uma tentativa tão articulada para a criação de um discurso único sobre o meio ambiente. A polarização política que se vê nos Estados Unidos, em torno da questão climática, é uma farsa: o comportamento do partido republicano mostra com clareza que se trata de uma disputa pelo poder, onde os envolvidos se comportam estrategicamente e defendem qualquer posição que maximize suas chances de vitória. E, acima de tudo, apresentam o problema climático como se houvesse apenas duas alternativas – aceitar ou negar o efeito das ações humanas nas mudanças climáticas –, mas as duas são validadas dentro do mesmo paradigma ocidental, exacerbadamente materialista e utilitarista. E as outras formas de pensamento e de vida, outras epistemologias e ontologias? Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, é preciso aprender a pensar “com” os outros. Segundo o pensamento ameríndio, por exemplo, ao invés de tomar os humanos como excepcionais em sua humanidade, há a ideia de que a humanidade é a essência comum de todos os seres vivos. Que tipo de ética e moralidade decorre dai, na relação entre humanos e não humanos? Não se trata de romantizar as formas indígenas de vida, mas apenas de mostrar como outros pensamentos são extremamente interessantes na abordagem dos problemas ambientais.

No meu entender, o que sobressai nesta questão da participação social e da multiplicidade cultural é o fato de que é preciso que os ocidentais, e nós, ocidentalóides, entendamos que há dimensões do problema que transcendem a materialidade e o utilitarismo. A exaustão dos recursos naturais, por exemplo, não será resolvida enquanto os padrões de subjetividade ocidentais não forem incluídos como parte fundamental do problema. Não adianta criar esquemas institucionais para evitar a “tragédia dos comuns”, por exemplo, sem lidar com os temas da satisfação e da responsabilidade. A insatisfação crônica do cidadão ocidental, e a forma irresponsável com que se relaciona com as coisas (ao pagar os governos municipais para “sumir” com o nosso lixo, sem que nenhuma pergunta seja feita, de modo que não precisemos pensar mais nele, por exemplo), são coisas tão importantes quanto a discussão sobre matrizes energéticas.
4) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras:
- tempo e clima: clima é um ponto de vista[1]; tempo é a vista (a partir) de um ponto[2] (notas: [1] Clima é “ponto de vista” no sentido de que trata-se de uma construção abstrata, resultante de cálculos estatísticos sobre medições de indicadores atmosféricos em intervalos amplos de tempo, e onde as técnicas estatísticas, o termômetro e outros mediadores técnicos têm tanta importância quanto a vibração das partículas que o termômetro busca medir; [2] tempo, no sentido dado ao conceito pela meteorologia, é o fenômeno atmosférico que existe num prazo de tempo mais curto, e portanto tende a fazer referência ao fenômeno em si, enquanto singularidade experiencial, ou seja, coisas que vivemos e lembramos, porque nos afetam num tempo e espaço específicos, e desta forma são a experiência a partir de um ponto).
  - sustentabilidade: o que exatamente se está tentando sustentar? Precisamos pensar a “mutabilidade” tanto quanto sustentabilidade. É muito difícil mudar o (insustentável) sistema econômico em que nos encontramos, e é preciso atentar para o fato de que, sob a fachada de “sustentabilidade”, há um esforço imenso de mudar apenas o que é necessário para que nada mude no final. O mercado de carbono é o exemplo paradigmático disso. Ou seja, em geral os debates sobre sustentabilidade (e sobre adaptação, resiliência etc.) são conservadores e insuficientes.
- construção social: já não há mais muita clareza a respeito do que significa tal associação de termos (o que é bom). Se tudo é construção social, a ideia deixa de ser relevante, porque não explica muita coisa. Tudo está em fluxo; se é “construção”, e se é “social”, depende de qual jogo semântico se está jogando. A expressão diz mais a respeito de quem usa a expressão do que sobre o fenômeno em questão. Tenho a impressão que dizer que o clima, por exemplo, é uma “construção social” constitui uma forma de evitar levar o clima a sério – e aqui estou repetindo ideias de autores como Bruno Latour ou Roy Wagner, por exemplo.
- ciência e cultura: há muito menos clareza a respeito do que significam tais termos (o que é melhor ainda). Num sentido mais propriamente filosófico, são duas ideias que morreram no século XX. Ou seja, tanto a Ciência como a Cultura, assim com “c” maiúsculo, que constituíam o santo graal do pensamento acadêmico Europeu dos séculos XIX e grande parte do XX se mostraram quimeras, principalmente em função dos trabalhos de gente como Heidegger, Merleau-Ponty, Wittgenstein, Gadamer, dentre muitos outros. Sobraram “ciências” e “culturas” com “c” minúsculo, ou seja, tais conceitos se transformaram em problemas empíricos. Puxando a sardinha pro meu lado (risos), se tornaram problemas antropológicos.
5) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.
No meu blog Uma (In)certa Antropologia (http://umaincertaantropologia.org) mantenho um arquivo de notícias e materiais acadêmicos sobre as relações entre cultura, sociedade e o clima. Há lá uma gravação em áudio de uma apresentação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que toca no tema das mudanças climáticas como crise do Ocidente, e como outros povos e outras culturas se relacionam com isso, que vale a pena ser ouvida. Ela está no link http://www.taddei.eco.ufrj.br/ViveirosdeCastro_IFCS_20111123.wav.
O livro Depois que a chuva não veio, mencionado acima, está disponível no link http://www.taddei.eco.ufrj.br/DQACNV.htm.
O documentário “10 tacticts for turning information into action”, também mencionado acima, está no site http://informationactivism.org/original_10_tactics_project#viewonline, com subtítulos em português – o exemplo de uso de animais como personagens está na tática número 3.
Há um vídeo provocativo do Slavoj Žižek, cujo título é Ecology as Religion, que evoca discussões importantes sobre como o meio ambiente existe no senso comum e nas discussões políticas. O video está reproduzido em http://umaincertaantropologia.org/2012/04/12/slavoj-zizek-on-ecology-as-religion-youtube/
6) Como conhecer mais de suas produções?
Há uma lista de artigos acadêmicos e também escritos para jornais e revistas em meu website, no link http://www.taddei.eco.ufrj.br/Textos.htm

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Que clima é este?



Dia 2 de junho, o cineclube apresenta Árido Movie (Brasil, 2005), de Lírio Ferreira, seguido da palestra “O clima em nossas histórias e nossas histórias sobre o clima”, com Renzo Taddei, professor e pesquisador da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da ECO-UFRJ. No mês em que se realiza a Rio+20, o convidado do Ciência em Foco usa o filme como uma provocação. Taddei propõe “uma reflexão sobre o que está em jogo - e como está o jogo - quando o clima passa a cumprir o papel de metáfora chave para as mais diversas arenas de embate da contemporaneidade”.
No enredo, um repórter do tempo que mora em São Paulo retorna à sua cidade natal, no interior do nordeste, para o enterro do pai, que foi assassinado. Lá ele encontra uma parte da família que ainda não conhecia, e que lhe cobra vingança pela morte do pai. Com um elenco de primeira, José Dumont, Paulo César Pereio, Selton Mello, Giulia Gam e Renata Sorrah, entre outros, o filme se destacou no Festival de Pernambuco com seis prêmios, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante (Selton Mello), Melhor Fotografia, Melhor Edição e Prêmio da Crítica.
Esperamos por você!

A cidade e seus demônios


Nesta quarta-feira acontece mais uma sessão do Cinerama, o cineclube da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ). A noite de hoje é dedicada ao cineasta paulista Carlos Reichembach, com a exibição de Filme demência (1986). Inspirado no Fausto de Goethe, o filme acompanha o personagem principal em um mergulho decadente na noite paulistana.

Um de seus mais marcantes experimentos cinematográficos, Filme demência recebeu o prêmio de Filme Inovador do Ano no Festival de Rotterdam de 1987, e foi vencedor de diversos prêmios no festival de Gramado de 1986, incluindo o Grande Prêmio da Crítica e o de melhor diretor.

Na abertura da sessão, será exibido um curta de Reichembach, Sangue corsário (1980). Mais informações na página do Facebook do Cinerama. A entrada é franca e a sessão começa às 18h30 no Auditório da CPM, na ECO, que fica no campus da Praia Vermelha da UFRJ. Assista abaixo ao trailer do filme, e boa sessão!

sábado, 12 de maio de 2012

O conhecimento em transe

No último sábado, dia 05/05, o Ciência em Foco exibiu o filme As hiper mulheres, de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro, seguido da palestra A potência de um filme comum, ministrada pelo professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, Cezar Migliorin. Chamando atenção para o desafio de se falar sobre um filme ao mesmo tempo tão próximo e tão distante de nós, Cezar iniciou sua fala marcando a relação do filme com o cinema brasileiro contemporâneo. Tanto neste filme quanto em outras produções atuais do cinema documentário, percebe-se uma relação entre a história que se conta e a encenação da vida dos personagens, configurando outro estatuto para a imagem. No filme, os modos de vida dos índios aparecem de forma não distanciada, atrelados às fabulações que eles fazem sobre si mesmos: eles não aparecem em cena como objetos a serem documentados, mas como agentes criadores do filme, como produtores das imagens.

Configura-se assim uma nova forma de se entender a imagem, cujas características dialogam com a história do cinema, sobretudo com práticas trazidas com o cinema moderno do pós-guerra. Estes elementos, veremos, também dizem respeito à relação entre a ciência e a ficção. Os primeiros filmes da história do documentário eram caracterizados por tentativas de se esconder a presença da filmagem, com a intenção de conseguir registrar a integralidade do documentado. Com o cinema moderno, a própria filmagem se faz presente como forma de se aproximar do universo filmado, diluindo a pureza e a objetividade que vigoravam nas anteriores tentativas de se abarcar a totalidade do objeto a ser documentado. Cezar trouxe o exemplo de Jean Rouch (1917-2004), cineasta e antropólogo francês.

Em seus filmes, Rouch colocava em cena o próprio conhecimento se construindo no contato com o outro, quando cineasta e espectador são colocados no lugar de quem acompanha o movimento do próprio conhecimento se inventando. Esta prática relacionista marca uma importante mudança de perspectiva com relação ao conhecimento: ele não é tomado como algo dado, natural, mas algo do qual eu participo e acompanho a invenção. As hiper mulheres parece se dividir em dois momentos que espelham e marcam essa passagem: no primeiro, a imagem parece organizada segundo regras do cinema clássico, com a presença de planos e contra-planos, a continuidade e a organização espacial definidas de antemão. Deixa-se entrever, no entanto, a proximidade entre os que são filmados e aqueles que filmam, abrindo espaço para um elemento de desorganização que explicita as operações da ficção. A partir da segunda metade, quando a dança e a música invadem a aldeia, a câmera é também embalada pelo movimento contagiante da festa e seus preparativos, quebrando a rigidez do primeiro momento. A festa marcaria uma mistura entre a encenação e o cotidiano, entre a memória e a fabulação, quando os limites da continuidade já não vigoram.

A realidade, portanto, seria inventada em negociação com os artifícios da ficção. Neste sentido, busca-se inspiração na lição da obra de Jean Rouch, cujos filmes encarnavam a ideia de que só se faz ciência - no caso, a etnografia - por meio de um gesto ficcional. Através dos deslocamentos dos lugares de fala, uma vez destituídos de hierarquias, a ciência e a imaginação podem ser reaproximadas, desembocando em uma espécie de transe que conecta os sujeitos e o seu entorno. O aspecto político do filme se associa à capacidade de produzir vivências comuns a partir do cinema, promovendo o engajamento pela criação de comunidade. No caso de As hiper mulheres, essa comunidade é evidenciada pela ausência de um corte explícito que separa dois mundos: o dos índios e o dos brancos, por exemplo. O índio está ali como alguém muito próximo, atuando e se inventando junto com o filme, produzindo modos de viver junto que dependam da força da invenção, e não de lugares pré-fixados.

Agradecemos imensamente o apoio dos realizadores do filme, e o apoio da APILRJ (Associação de Profissionais Intérpretes de Libras do Rio de Janeiro). Nossa próxima sessão acontecerá no dia 2 de junho de 2012, com o filme Árido Movie (2006), de Lírio Ferreira. Aquecendo e antecipando as discussões em torno da Rio+20, teremos a honra de receber, como convidado do mês, o professor da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ), Renzo Taddei. Ele é doutor em Antropologia pela Univ. de Columbia, em Nova York, pesquisador da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (ECO-UFRJ) e membro do Grupo de Estudos de Antropologia da Ciência e Tecnologia (GEACT). Ele apresentará a palestra O clima em nossas histórias e nossas histórias sobre o clima. Anote na agenda e divulgue! Até lá.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

Os olhos da ciência

Amigos do cineclube, tem podcast novo no ar! Na conversa de hoje, o doutor em filosofia Paulo Oneto apresenta a palestra "A relação sujeito-objeto" a partir da exibição de Profissão:repórter. Personagem central da trama, o repórter  seria uma espécie de metáfora de nossa sociedade, colocando em evidência uma forma de relação com o mundo sustentada por uma ideia de distanciamento. Discussão atual e instigante!


Clique abaixo para ouvir a palestra A relação sujeito-objeto (57min.). Ou baixe aqui o arquivo zipado (52MB).






segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os primeiros momentos da vida, em quatro cantos do planeta

O início de semana já é marcado por uma sessão de cineclube. O CineMarx, uma iniciativa em cine-debate universitária do Instituto de Educação Física da UFF (IEF/UFF), apresenta hoje, dia 07/05, sua sessão do mês de maio.

Será exibido o filme Bebês (Bébé(s) - França, 2010), de Thomas Balmès, um encantador registro do nascimento e dos primeiros meses de vida de quatro bebês, em quatro cantos do planeta, pertencentes a culturas bastante diferentes.

Após a exibição, haverá uma roda de conversa com as professoras Claudia Assumpção e Norma Ribeiro, que atuam na Educação Infantil do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ).

O CineMarx acontece em Niterói, na Sala Rosa do Instituto de Educação Física da UFF, no Campus Esportivo do Gragoatá (Av. Visconde do Rio Branco, s/n - Centro), às 14h30. A entrada é franca.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A formação acadêmica, entre sonhos e descobertas


Como será a vida de estudantes brasileiros em grandes instituições de ensino superior? O que está em jogo em sua trajetória profissional de grandes promessas, e como lidar com as exigências, os anseios e a dedicação que suas escolhas impõem?

Questões como essas são evocadas pelo filme Romance de formação (Brasil, 2011), primeiro longa-metragem da cineasta Julia De Simone, que acompanha as experiências, os sonhos e o cotidiano de quatro jovens brasileiros em grandes universidades do mundo.

A partir de um olhar sobre a vida dos estudantes e os encontros destes jovens com as instituições, o documentário procura entender o universo retratado ao mesmo tempo em que nos incita a pensar sobre o papel da educação, o desejo de sucesso e as forças que movem nossas escolhas.

Nesta sexta-feira, dia 04/05, às 14h, haverá uma pré-estreia do filme no auditório da CPM, da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ), que fica no campus da Praia Vermelha. Após a projeção, haverá um debate com a diretora Julia De Simone, e com o crítico Juliano Gomes. A entrada é franca. Assista ao trailer abaixo e visite o site do filme para maiores detalhes.