segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Descobrindo Cronenberg pelo olhar de Capistrano

"O filme desnuda corpos apáticos, existencialmente insatisfeitos, cuja 'droga' é a superexcitação produzida pela velha cópula entre sexo e violência. Este tipo de adicção é cada vez mais presente na sociedade contemporânea com suas redes de informação e espetáculo".

Conheça um pouco de Tadeu Capistrano, próximo palestrante do Ciência em Foco, Doutor em Literatura Comparada pela UERJ e professor de Teoria da Imagem da Escola de Belas Artes da UFRJ.

1) Fale um pouco de sua trajetória e do seu encontro com o cinema.

Meu "encontro" com o cinema foi lá pelos cinco anos, com o filme "Tubarão". Ouvia minhas irmãs conversarem sobre o filme e ficava imaginando o cinema como um grande aquário onde as pessoas mergulhavam nas cenas. Depois, quando comecei a ir no cinema, vi que as coisas eram realmente bem emocionantes, porém muito comportadas perto do que imaginava ser "cinema". Mais tarde, na adolescência, em meados dos anos 80, descobri que cinema era muito mais do que diversão. Tinha um amigo cujo pai era dono de uma grande videolocadora, e nós escrevíamos as sinopses dos filmes de terror e ficção científica (e alguns "X-rateds") para por naqueles antigos ficheiros dos videoclubes. Cheirávamos a VHS. Enclausurados em um quarto sempre repleto de vídeos, descobríamos alguns filmes estranhos, inclassificáveis, que nos fascinavam. Foi assim, cheio de tesão, que conheci vários diretores de cinema. Isso coincidiu com o intercâmbio de fanzines de punk rock e quadrinhos, em que também começamos a escrever matérias sobre filmes e cineastas que cultuávamos, desde os clássicos (sobretudo Hitchcock e Welles) a Tarkovski, Cronenberg, Lynch, Angelopoulos, Wenders, Greenaway, Kurosawa, Zulawski, a galera da Nouvelle-vague e tantos outros que marcaram aquele período de descobertas. Era uma salada deliciosa. Fui gerado por essa videofilia dos anos 80.

2) Você frequenta ou já frequentou, como palestrante ou espectador, algum outro cineclube?

Sempre que posso, frequento e falo em cineclubes. O Rio é muito privilegiado nisso, com sua variedade de mostras, festivais e encontros com o cinema. Acho esta cinefilia festiva muito gostosa, empolgante e, com toda leveza que possui, cada vez mais séria. Isso deve ser sempre estimulado, cultivado, reforçado, preservado.

3) Apesar de Cronenberg ter sido associado, desde seus primeiros filmes, a uma temática voltada a desdobrar implicações relacionadas às tensões entre corpo e tecnologia, seus últimos filmes aparentemente se distanciam destes temas. Que questões estariam motivando Cronenberg hoje, e de que forma elas estariam ampliando sua temática?

Os útimos filmes de Cronenberg (Spider, Marcas da Violência e Senhores do Crime) aparentemente destoam de sua produção anterior, marcada obssessivamente pelo tema dos poderes da tecnociência sobre o corpo. Cronenberg é uma espécie de existencialista que parece hoje ter deslocado a questão do corpo para a agonia da interioridade no mundo contemporâneo. De certo modo isso já estava sendo anunciado em Crash. Apesar de ter flertado com os gêneros horror e ficção científica, Cronenberg sempre optou por caminhos marginais à grande indústria cinematográfica, o que confere o estatuto autoral de sua obra "visceral". Ironicamente esta característica a tornou uma presa fácil para a mesma indústria para a qual lutara. Me parece que toda aquela escatologia que singularizou os filmes de Cronenberg foi perdendo com esta captalização de sua potência anárquica. Além disso, as relações entre corpo e tecnologia já estão bem digeridas pelo nosso cotidiano. Pelo que temos visto, Cronenberg tem explorado outros dramas do homem, assombrado por novos incômodos, memórias involuntárias e incapaz de ser livrar de sua inerente animalidade: o corpo e suas pulsões. Cronenberg tem apresentado personagens que contradizem todo este projeto falido de civilização na qual estamos embrenhados. Os pavores e sofrimentos foram transfigurados e Cronenberg tem propiciado mergulhos nessas "almas" traumatizadas, presas, atormentadas e que beiram à bestialidade. A humanidade continua indigesta.

4) Talvez pela forma alucinatória com que trata as transmissões televisivas, 'Videodrome' é considerado por muitos um filme visionário. Sem adiantar muito a sua fala, o que existe de atual para se pensar a partir de 'Videodrome', em uma época na qual a televisão se mostra cada vez mais interativa e descentralizada?

Videodrome aborda, entre outras coisas, os prazeres do espectador com o horror e a pornografia. Porém os personagens buscam esta excitação ao extremo, imergindo na "vida em vídeo" que constrói uma percepção espetacular da realidade. O filme desnuda corpos apáticos, existencialmente insatisfeitos, cuja "droga" é a superexcitação produzida pela velha cópula entre sexo e violência. Este tipo de adicção é cada vez mais presente na sociedade contemporânea com suas redes de informação e espetáculo. A televisão está cada vez mais incorporada ao gosto do espectador, cada vez mais celularizado, a-crítico, mais dependente da espectralização (virtualização) e fascinado com as novas seduções dos espetáculos eletrônicos. Isso é apenas um dos temas que Cronenberg aborda em Videodrome, e que depois o retomou em eXistenZ.

5) Atualmente, conteúdos e informações transitam mais livremente e cada um passa a ter, cada vez mais, a possibilidade de controlar e transmitir as suas imagens e suas narrativas, seus desejos, suas formas de exposição. Como você enxerga as redes sociais nesse contexto?

Acho ótimo que exista essa possibilidade e cada vez mais o acesso a essas ferramentas midiáticas. São umas maravilhas, não? Quando bem usadas são muito eficazes e podem se revelar, além de ótimas ferramentas de comunicação, poderosas armas políticas. Veja o exemplo da WikiLeaks e de várias usuárias e usuários que fazem de suas respectivas redes sociais potentes curtos-circuitos de informação. Porém, infelizmente, o lado podre da maçã é bem maior: a maioria forma um patético show de vaidades de um suposto-interessante "eu" recheado de blablablás e tititis. O tempo pessoal está cada vez mais escasso e se vive cada vez mais sob demanda. O "passa-tempo", por exemplo, se tornou um escândalo ou foi sutilmente transfigurado. Vejo isso no vício de conexão com seus diferentes imperativos de feedback: seja da comunicação compartilhada pelos e-mails ou das redes sociais. Se você não responde ou demora a responder um e-mail, chamado ou mensagem, logo é neuroticamente taxado de antipático, "devagar" ou mesmo incompetente. Não tenho nada contra "a rede", o problema é ficar preso a este emanharado que sustentamos. Cada vez menos gosto de me conectar e não sei como as pessoas conseguem gerir facebooks, twitters, orkuts, etc.. Acho até, em alguns casos, admirável. Não dou conta nem dos e-mails...

Minha tese, sobre cinema, tecnologia e percepção, será publicada brevemente pela editora Contraponto. A versão dela, compactada, está disponível aqui na rede - está vendo como já fui capturado por esta perigosa armadilha? Quem quiser entre em contato (tcapistrano@gmail.com) Só não garanto o feedback imediato...


Venham mergulhar no Videodrome sem medo! Vamos nos divertir e pensar.

Um comentário:

  1. O melhor no cine clube ciência em foco é após assistir a sessão de filme, e ter suas impressões sobre o mesmo, é poder comparar com outra visão o da comunicação, agregando valor ao já conhecido, ratificando a beleza da construção do conhecimento, suas variáveis e a delicadeza do ser múltiplo.
    O mesmo conhecimento que no campo social parece não aflorar fora da academia. O filme Videodrome apresentado na sessão de Fevereiro mostra a dificuldade da percepção de separar o real do imaginário principalmente no campo tecnológico que vivenciamos hoje. Pensar a questão é um privilégio que tive com a valiosa contribuição do convidado Tadeu Capistrano. de Lucas Cavalcante – e-mail: lcante@hotmail.com

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