terça-feira, 9 de agosto de 2011

Resistir ao estado de exceção da imagem

Neste sábado, o Ciência em Foco exibiu o clássico Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury. Tivemos a alegria de receber, como nossa convidada do mês, Marcia Tiburi, com a palestra Entre a escrita e a imagem. Marcia é doutora em filosofia pela UFRGS e professora do programa de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie, SP, e recentemente lançou o livro Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem. Situando algumas questões em torno da relação entre cinema e pensamento, Marcia apontou uma propriedade dos filmes que nos permite pensar a respeito da própria atividade cineclubista: ao comentar que sempre há uma teoria dentro de um filme, que os filmes são sempre discurso, ela chamou atenção para o fato de nós desconfiarmos sempre daquilo que vemos, de que o olhar não promove acesso à certeza. Decorreria daí, portanto, a necessidade de se conversar sobre os filmes e de vê-los em conjunto.

No caso do filme de Truffaut, ele se projeta como um retrato bastante atual da nossa sociedade do espetáculo, na qual os livros não têm mais tanto espaço, apresentando a violência que a ditadura do visual impõe ao verbal. Na adaptação do livro de Bradbury, Truffaut explora esta realidade distópica com as imagens, na própria estrutura do filme, que nem mesmo apresenta palavras na forma de créditos iniciais. De saída, o espectador é lançado em uma realidade hostil à palavra. Marcia até alertou que hoje nós deveríamos já pensar em decorar alguns livros, como os personagens que são as pessoas-livro, no filme. A partir das ideias de Guy Debord, Marcia comentou sobre a transformação da imagem em capital, que passa a nortear todas as nossas relações.

Em Fahrenheit 451, a palavra é entendida como uma coisa perigosa, e até mesmo o ato de conversar não é desejável. Marcia contrapôs a conversa à tagarelice, que impera em nossa sociedade hipertrofiada de imagens, estimulando a imbecilização do mundo quando o espaço da palavra é esvaziado. Este cenário é alcançado quando se tornam homogêneos e apáticos os comportamentos, com o recalque às emoções e afetos - uma realidade que hoje vemos espalhada nas formas de psiquiatrização do mundo, ocupadas em docilizar as pessoas. Constrói-se assim um estado de coisas autoritário, possibilitado pelo enrijecimento da emoção e do afeto, impondo uma pretensa racionalidade avessa à variedade, à diferença, favorecendo a rejeição do outro. No filme, a TV é um dos meios para se atingir esta alienação dos indivíduos, tornando-os desconectados do mundo e de si mesmos. Seduzido pelo espectro que emana da tela, o espectador é aprisionado em ilusões de certezas que provêm do olhar, lançando-nos em um dilema platônico: acreditamos que tudo vemos enquanto estamos, de fato, imersos na ignorância acerca do sentido da nossa própria visão.

Esta captura espetacular pela tela proíbe o acesso à palavra, à conversa, constituindo um estado de exceção e uma lei da qual decorre um controle introjetado e assumido pela própria cultura dos indivíduos. Mas como resistir à cultura do espetáculo? A resistência aparece, no filme, na figura das pessoas-livro, excluídas da sociedade por não agirem e pensarem como os outros. A partir da lição delas, seria preciso subverter o jogo e criar uma outra realidade a partir das margens, onde o pensamento insiste diante da hostilidade dominante. Ela evocou diversos conceitos de pensadores diversos, como a mera vida, de Walter Benjamin e o estado de exceção, de Giorgio Agamben. Tivemos um debate bastante proveitoso, no qual foram discutidas possíveis saídas criativas para a transformação deste estado de coisas.

Continuaremos pensando as imagens em nossa próxima sessão, quando exibiremos o filme Guerra sem cortes, de Brian de Palma, e teremos a alegria de receber, como convidado de setembro, o professor do Departamento de Letras da PUC-Rio Karl Erik Schollhammer, doutor em Semiótica pela Aarhus Universitet, Dinamarca. Ele publicou, dentre outros livros, Além do visível, Linguagens da violência e Ficção brasileira contemporânea. Anotem na agenda, divulguem e não deixem de acompanhar o blog para maiores informações.


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