Nesta edição de Conversações, recebemos a colaboração de nossa convidada de abril, Carlinda Nuñez, que ministrará a palestra Com quantos frames se faz uma tela? O paradoxo das histórias pintadas e da pintura em movimento, após a exibição do filme O moinho e a cruz (Bruegel, le moulin et la croix, 2010), de Lech Majewski.
COM QUANTOS FRAMES SE FAZ UMA
PINTURA?
O paradoxo das histórias pintadas e da
pintura em movimento
No filme de Lech Majewski,
O
Moinho e a cruz (Suécia / Polônia, 2010, 97min), uma tela do pintor
Pieter Brueghel se vai montando,
adquire vida: reconstitui a problemática política de sua época (séc.
XVII) a partir do contraponto com a história sagrada, o que torna a narrativa enigmática,
multiperspectivada (porque é uma construída em diversos patamares) e complexa.

Duas são as principais fontes do
trabalho cinematográfico que o diretor polonês Lech Majewski explorou para produzir a sua obra de
arte fílmica: a tela de Brueghel,
O
Caminho para o Calvário, pintada em 1564 e pertencente ao acervo do
MuseuHistórico de Viena, e o livro que empresta seu título ao filme, de Michael
Francis Gibson (
The University of Levana Press, 2012), crítico e historiador de arte, pesquisador
de altíssimo nível, mas independente do circuito acadêmico, que a analisa em detalhes
minuciosos e imperceptíveis a olho nu.


O filme é o resultado do
bem-sucedido encontro de dois projetos desafiadores. O de Gibson foi demonstrar que a tela
renascentista se utiliza de duas poderosas alegorias para construir o seu
discurso (pictórico) contra a violência da coroa espanhola sobre o território
de Flandres. O moinho, esta engenhosa
edificação com estrutura mecânica que se difundiu na Europa a partir do século
X, auxiliou o desenvolvimento da cultura humana ao longo de dois milênios, facilitando
o trabalho humano e provendo o mais importante alimento dos grupos sociais que se
aprimoraram, em muitos casos, ao seu redor. Ele é alegorizado por Brueghel,
como lugar-tenente de onde Deus acompanha as ações dos homens. Na verdade, os
moinhos de vento, em suas origens, eram edificados em lugares altos, justamente
para que seu mecanismo se beneficiasse dos ventos que os fariam mover-se
melhor. Mas não era só esta a razão. Por
se situarem no alto, ocupavam posições estratégicas, asseguravam a defesa das povoações
vizinhas e atribuíam prestígio aos moleiros, que podiam se comunicar com
eficiência à distância. Esta associação do moinho com o alto, com as forças
elementais e com o Alto está enraizada na memória tanto de campesinos quanto de
montanheses. Na Grécia, antigos moinhos foram a base para a construção de
mosteiros inexpugnáveis na região de Meteora. Mesmo que Brueghel não os tenha
conhecido, o moinho da tela os evoca: a estranha formação geológica que domina
o plano superior esquerdo da tela é suficiente para ocupar o lugar simbólico de
tribuna que fiscaliza os ritmos humanos e os há de julgar.
Se o moinho se liga ao céu (por
esta e muitas outras razões), a cruz simboliza a terra: está na representação
dos pontos cardeais, ao tabu das direções, à mediação entre o divino e o
humano. É a imagem mais contundente da tradição cristã, por ter sido o lugar da
morte do Cristo, o “ungido”. Se o
moinho é par metonímico de Deus (um desdobramento do poder divino, na terra), a
cruz é metafórica de vida eterna no céu.

O princípio condutor da narrativa
fílmica é uma antiga obsessão de poetas e criadores, desde a mais remota
tradição estética: transpor as fronteiras formais e técnicas entre as artes
(cf. Simônides de Ceos, grego do séc. VI-V a.C. e Lessing,). Que há
similaridades entre todas as artes, é inegável. As especificidades, entretanto,
sempre se impuseram: pintura, escultura, dança, fotografia e cinema, como artes
espaciais, se constroem/apresentam através da simultaneidade,
alegorizando e recortando o momento ótimo dos temas; a literatura, como arte basicamente
temporal, inventa ações que se
desenvolvem sucessivamente (ou não). Lessing (alemão que viveu entre 1729-1781)
foi o primeiro a mencionar a possibilidade de “pinturas poéticas” (ou seja,
inventivas e capazes de sugerir o encadeamento de ações).

Majewski supera ineditamente, no
século XXI, ambos os desafios: concretiza a transposição de temas e ideias
poéticas da tela estática da pintura para a tela cinematográfica, não
simplesmente como um exercício de tradução e adaptação entre duas mídias, mas
estabelecendo os nexos entre os planos espacialmente dispostos, em sincronia, da
pintura de Brueghel, enquanto restaura, com imaginação e rigor histórico, a
narrativa que ela contém. E o faz através da experimentação vertiginosa de procedimentos
tecnológicos e estéticos capazes de transformar em ação, tornar dinâmico, o
que, na obra de partida, era estático.

Em termos práticos, o filme ultrapassa
a interpretação artística de uma obra de arte. O filme é uma obra complexa em
si, apoiada em paralelismos de diferentes ordens com a tela belga, que ganha
vida, e os supera. A história de Flandres castigada pelo rei católico (Filipe
II de Espanha) se compagina com a história da crucificação, manipulada pelos
representantes de Roma no Oriente; o catolicismo espanhol entra em confronto
com um paganismo que atravessou o medievo e irrompeu com toda força, no
Renascimento (cf. Aby Warburg), haja vista a alegoria do moinho medonho e do
deus que dele vigia, pré-diluvianamente, com uma ira arcaica e todo-poderosa,
diferente da imagem do Deus-pai da mensagem cristã. Brueghel, personagem do
filme, dá o sinal para o moleiro parar o moinho e, assim, outra máquina entrar
em ação, a de produção de sentidos, sínteses interpretativas que começam a se organizar,
conforme a silenciosa narrativa fílmica avança.

Abrem-se conexões entre política,
religião, ética, vida cotidiana e arte, bem como a relativização das fronteiras
entre realidade e ficção. A história sagrada é concretamente vivenciada através
da sujeição humilhante a que os belgas de então foram submetidos. Já as
mulheres em torno de Maria e São João, no plano inferior da pintura, mais
parecem figuras de Van Eyck, pintor cento e cinquenta anos anterior a Brueghel:
bem desenhados, patéticos, expressivos, diferentes da massa de quinhentos
figurantes da tela, representados com mais entusiasmo e menos exatidão que o
grupo sagrado. O Cristo, no centro da tela, não é o centro das atenções, que se
deslocam para um cavaleiro logo abaixo do Salvador (sem rosto), num cavalo
branco, magnífico, face descobert, chamativo: nossos olhos acompanham os olhos
dos figurantes da tela e são reconduzidos por Majewski para as situações
impiedosas dos pequenos escândalos nossos de cada dia.
Nós, os espectadores, graças à
animação da tela, participamos do mundo de Brueghel, mas não perdemos nossa
condição de observadores contemporâneos: fascinados pelas câmeras e pelo
laboratório de imagem de Majewski, levamos para o passado renascentista nossas
questões e, com ele, reconhecemos tanto os prodígios da contemporaneidade
quanto as violências de que somos ora vítimas, ora algozes.
A realidade paradoxal apresentada
na pintura é reinterpretada no filme, através de múltiplos recursos (acústicos,
semióticos, culturais, performáticos etc...) que reafirmam a riqueza e a
autonomia dos dois objetos estéticos colocados em tensão. Saltam aos olhos e
ouvidos suas diferenças, suas peculiaridades e seus silêncios. O que neles
permanece impenetrável é talvez o que mais repercute em nós. O não-dito, aí,
não significa ausência de fala, mas um discurso que se comunica à sua maneira.
No caso de O Moinho e a cruz, como
arte.
Carlinda Fragale Pate Nuñez
Doutora em Ciência da Literatura/UFRJ, com pós-doutorado na Univ. de Freiburg, Alemanha, professora e coordenadora do mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada/PPGL-UERJ. Ela é a convidada do Ciência em Foco do mês de
abril.