sábado, 2 de novembro de 2013

Os universos do pensamento e da história



A perda de uma posição “geográfica”, por assim dizer, no Universo é chamado usualmente de “Princípio Copernicano”. Ele nos diz que a Terra é um planeta como outro qualquer, ao redor do sol, que é uma estrela como todas que brilham no céu, que nossa galáxia é apena uma entre centenas de bilhões etc. É, a princípio, um princípio de mediocridade, por assim dizer. Mas ele mesmo é um contraponto de uma aposta fundamental (...)

Jaime Fernando Villas da Rocha, astrônomo e historiador, doutor em Astronomia pelo Observatório Nacional, professor da UNIRIO e palestrante do Ciência em Foco de novembro.

1) Por que pensar com o cinema?

Imagem e tempo. Imagem e ação. Reprodutibilidade técnica. O Cinema, como a Astronomia ou a História, em seus terrenos, reúnem articuladamente um conjunto de representações e linguagens antes menos comunicantes. De certa forma, é a arte que se utiliza das possibilidades de nossa civilização tecnológica para realizar esta síntese, abrindo a possibilidade de pensar estas representações, esta civilização tecnológica inclusive.





2) Contato é um filme baseado no livro de ficção-científica do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que contribuiu com a produção e faleceu pouco antes de ver o filme pronto. A evolução do conhecimento científico desdobrado de áreas como a astronomia legou à humanidade uma posição cada vez mais afastada de uma posição central no Universo. Comente a respeito desta propriedade da ciência e das possíveis perspectivas éticas que ela oferece.

A perda de uma posição “geográfica”, por assim dizer, no Universo é chamado usualmente de “Princípio Copernicano”. Ele nos diz que a Terra é um planeta como outro qualquer, ao redor do sol, que é uma estrela como todas que brilham no céu, que nossa galáxia é apena uma entre centenas de bilhões etc. É, a princípio, um princípio de mediocridade, por assim dizer. Mas ele mesmo é um contraponto de uma aposta fundamental: a de que a física do universo é uma só e, portanto, podemos conhecê-lo como um todo e em detalhe a partir do conhecimento que construímos aqui na Terra. Podemos fazer modelos de como são os interiores das estrelas sem nunca ter tocado em uma. Podemos descrever processos que se passaram no Universo como um todo em uma época tão primeva que não podemos observar etc. Porque a realidade é una.

Por outro lado, aprendemos muito sobre o fato de a vida complexa exigir condições muito especiais para ocorrer. Neste sentido, nosso planeta, nosso satélite natural, nossa vizinhança imediata, nossa estrela, nossa posição na Via Láctea e nossa Galáxia como um todo são de alguma forma especiais para que vida complexa possa acontecer. Ademais, nem a época em que acontecemos poderia ser qualquer nem a gramática das leis da física poderia ser qualquer para vida acontecer. Aprendemos muito com o quanto especial somos e quão específico é o momento do Universo em que acontecemos.



3) Em âmbito nacional, percebemos hoje uma ênfase nos discursos políticos que apelam para o desenvolvimento e à técnica. Por outro lado, também percebemos uma crescente visibilidade de fundamentalismos religiosos ligados ao cenário político. De que forma você percebe a atualidade do filme, tendo em vista as discussões que ele põe em cena envolvendo o embate entre os discursos da técnica, da ciência e da religião atrelados ao plano democrático das decisões políticas? 

Este é um ponto central para mim. Minha filósofa favorita, Hannah Arendt, por coincidência objeto de um filme recente, identificou em Kant uma diferença fundamental nas atividades mentais e uma tragédia cultural nossa. A diferença é a que existiria entre as esferas do pensar e do conhecer, cada uma com sua categoria específica: a esfera do pensar teria por categoria a criação de sentido, enquanto que o conhecimento tem por critério a Verdade. Nossa tragédia seria a de que pensamos o pensamento, desde Platão, com o critério de verdade e não de sentido. Isto permite que dimensões associadas ao sentido, como as religiões, se apropriem do critério de verdade tendo como contraponto a apropriação do conhecimento construído para negar sentido à experiência religiosa. E o terreno da política, que é a esfera do pensamento em ação, se vê contaminado por estas apropriações indevidas. Ao impor critérios de verdade, com seu apelo de absoluto, impedimos o embate de diferentes visões, que é a esfera da política.

Junte-se a isto o fato de que, mesmo em ciência, o próprio critério de verdade é relativizado, e temos preparado o terreno para a possibilidade de emergência de fundamentalismos embasados em nossa tradição de pensamento.



4) A astronomia é uma ciência que tem muitas afinidades poéticas com o cinema, desde o seu substrato comum – a luz – até a dependência de elementos que remetem à visualidade. A astronomia também lida em grande parte com o tempo, e com o passado daquilo que podemos hoje observar. Como você percebe as relações possíveis entre a astronomia e a história, tendo em vista sua formação em ambas as áreas do conhecimento?

A Astronomia é uma ciência histórica e arqueológica. Inescapavelmente. Ela lida com a realidade e a realidade acontece. Isto significa um conjunto de possibilidades que se reorganizam permanentemente. Cumpre compreender o acontecido dentro deste quadro de possibilidades.

Para tal, como a história entre as ditas ciências sociais, a Astronomia reúne articuladamente diversos ramos do conhecimento, como Física, Química, Biologia etc. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista cosmológico, temos acesso ao nosso passado como um todo imediatamente. A luz tem uma velocidade finita, então de quão mais distante nos chega a informação, mais do passado ela provém. Assim, nosso agora é o centro de esferas temporais do passado de nosso Universo e é assim que temos de empreender um trabalho arqueológico sobre estas camadas. Isto altera nossa perspectiva sobre a mediocridade a que estaríamos relegados pelo “Princípio Copernicano” inclusive.



5) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras: conhecimento e memória; fé e razão; vida.

Identidade. Acontecer. Pensar.

6) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.

Eudoro de Souza - "Horizonte e Complemetariedade"

Hannah Arendt - "A Vida do Espírito"

7) Gostaria de lançar aos que acompanham nosso cineclube uma pergunta-síntese provocativa acerca da problemática de queira tratar em sua palestra?

Pensar é uma viagem para o além?

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