No último sábado, aconteceu o encerramento da temporada 2012
do Ciência em Foco. Recebemos o professor de Teoria da Literatura e Literatura
e Cinema da UFF, Adalberto Muller, que abriu sua conversa conosco com a
palestra F de falso: o autor e seus duplos, logo após a exibição do
filme Verdades e mentiras (F for Fake, 1973), de Orson Welles. A
conversa gerou um ótimo debate, no qual foram discutidas questões em torno da
relação entre arte, verdade, pensamento e política. Adalberto iniciou sua fala
situando a trajetória de Welles face ao filme, já que muitos o consideram um
projeto afastado daquelas obras que o notabilizaram como diretor, como Cidadão
Kane (Citizen Kane, 1941). À parte a estranheza que o filme causou
na época de sua exibição, Verdades e mentiras foi aos poucos ganhando
importância na filmografia de Welles, a ponto de ser considerado, por alguns,
seu principal filme. Adalberto comentou também suas relações com motivos
recorrentes na obra de Welles, dentre os quais se destaca o percurso em busca
de alguém que possui uma identidade suspeita, ao longo do qual se questionam as
fronteiras entre a verdade e a mentira. A partir desta marca da autoria de
Welles, Adalberto nos convidou a pensar sobre a importância da questão da
autoria na discussão sobre a arte dentro das ciências humanas, em cujo contexto
o filme está situado.
No final dos anos 60, o papel do autor foi colocado em
questão por intelectuais franceses, como os filósofos Michel Foucault (em seu
texto O que é um autor?) e Roland Barthes (em seu texto A morte do
autor). Foucault, por exemplo, comentou ter sido comum, em outros tempos, a
produção artística estar associada ao anonimato. No entanto, em nosso tempo, a
assinatura, a autoralidade da obra, parece ser a garantia de seu valor, sobretudo
o seu valor monetário. De fato, o filme de Welles tem como uma de suas
principais reflexões a pergunta sobre até onde a arte depende da assinatura.
Seria a assinatura determinante para a experiência artística? Por haver a
importância atribuída ao autor, a autenticidade da obra também se torna
importante: a distinção entre a obra verdadeira e a falsa. Neste sentido, o filme
de Welles apresenta elementos interessantes desde a produção. Ele é um filme
construído a partir de um outro filme, de outro diretor, do qual ele utiliza
cenas e sobrepõe diversas camadas, chamando atenção para o aspecto do falso
evocado pelo primeiro, adicionando dimensões outras e incluindo também elementos
autobiográficos.
Tradicionalmente entendido como um documentário, o filme traz
problemas quanto a sua delimitação em um gênero. Embora seja considerado hoje
como um primeiro “filme-ensaio”, até então não se conhecia esta noção, que Jean-Luc
Godard, por exemplo, irá empregar mais à frente. Ele também deu início ao
gênero mockumentary, espécie de
documentário falso que brinca com dados verídicos, recorrente a partir dos anos
90. Adalberto também chamou atenção para as ressonâncias do filme com o que
será posteriormente a influência das características do vídeo no cinema (elementos
para os quais vão se voltar cineastas como Godard e Antonioni), sua liberdade
de criação e edição, ao mesmo tempo em que dava os primeiros passos para
colocar em cena um tipo de filme muito presente e discutido no mundo
contemporâneo, o filme de arquivo. Foi comentada a proximidade do filme com a obra
de Lewis Carroll, autor de Alice no país
das maravilhas, pelo fato de o filme se sustentar sobre a figura do
paradoxo, apresentando uma superfície (a discussão sobre a falsificação no
mundo das artes plásticas) que se desdobra em infinitas dimensões (quando sugere
discussões sobre os paradoxos da verdade e da mentira, a partir de um viés mais
filosófico).
O aspecto político do fazer artístico também é um dos pontos
fundamentais para os quais Orson Welles chama atenção no filme. A indústria do
cinema, especialmente Hollywood, com seu processo fascista de produção, acaba
restringindo e escamoteando as possibilidades da experiência cinematográfica,
cuja origem se associa a uma dimensão mágica. Apesar de a indústria escamotear
a magia do cinema quando prioriza o mercado, Welles nunca abandonou esta
dimensão, ciente de que ela pode dar acesso a outras formas de experimentar o
mundo. Daí sua insistência, com Verdades
e mentiras, na positivação do aspecto do falso, da ilusão, na potência
criativa de ressignificar as coisas e o mundo. Welles dialoga com processos em
voga hoje no mundo digital e na arte contemporânea, quando eleva a apropriação
do material alheio ao estatuto de arte. Deste modo, desloca-se também a questão
da autoria, a ideia de criação artística associada à figura do gênio, ao
isolamento. O filme nos convida a pensar a arte situada na criação coletiva,
implicando em uma democratização do pensamento e dos processos a partir do qual
se produz e se experimenta a obra.
No mundo de imagens em que vivemos, a verdade é menos importante
do que a ilusão de verdade, do que seu efeito. Portanto, a tarefa que se
configura seria pensar muito mais nos efeitos de verdade do que nas verdades, em
como são produzidos certos efeitos de verdade. Eis a lição política de Orson Welles.
A discussão trazida em nosso encerramento de temporada não poderia ser mais
adequada: ela também dialoga com muitas das conversas que tivemos em nossas sessões
ao longo do ano, que nos fizeram pensar, com os filmes, sobre as maneiras pelas
quais determinadas verdades são construídas, o modo como determinados
conhecimentos são gerados e a forma como afetam nossa relação com o mundo. Nos
vemos na sessão inaugural da próxima temporada, no dia 2 de março de 2013!
Fiquem ligados no blog para uma retrospectiva da temporada 2012, para notícias
sobre nosso próximo livro e para as atualizações da nossa programação. A equipe
deseja a todos um feliz ano novo!
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