quarta-feira, 10 de outubro de 2012
O anonimato e a afirmação do inapreensível
A sessão do último sábado do Ciência em Foco apresentou o filme Santiago (2007), de João Moreira Salles, seguido da palestra de Luis Antonio Baptista. O professor titular do Departamento de Psicologia da UFF esmiuçou o que ele havia chamado, no título de sua palestra, de uma 'ética do anônimo', começando sua fala com um esclarecimento metodológico: apesar de ser psicólogo e atuar, no meio acadêmico, com a psicologia, seu interesse no cinema não se reporta à utilização dos filmes como instrumentos capazes de ilustrar determinados conceitos e teorias. Em seu lugar, busca-se utilizá-los com a perspectiva de provocar interrogações e inquietações que movimentem elementos teóricos de seu campo de pesquisa. Para ele, o cinema é capaz de transfigurar o real na medida em que provoca o estranhamento - mais que o entretenimento - , anunciando-nos novos modos de olhar o mundo e a nós mesmos. Com relação ao cinema documentário, o que estaria em jogo? Luis afastou a restrição das características do documentário à mera informação de um fato ou denúncia de uma realidade. Se o documentário permanece neste registro, limitam-se as possibilidades inventivas que são próprias aos modos de produção do filme, suas apostas estéticas, que não se referem somente ao objeto ao qual se quer direcionar a atenção.
Santiago é um filme que escapa ao modelo de um documentário confessional, deslocando e destruindo fronteiras daquilo que se poderia imaginar ser o espaço próprio ao diretor e ao de seu então mordomo. Devido aos seus procedimentos estéticos, com sua montagens e na retomada do filme anteriormente inacabado de Salles, aos poucos vão se construindo novas fronteiras e outras espacialidades nas relações até então colocadas, que adquirem outras configurações. Para Luis, a beleza do documentário estaria neste deslocamento e rearranjo das fronteiras entre Eu/Outro. Para fundamentar uma ética subjacente a esta proposta, Luis comentou algumas ideias do filósofo francês Michel Foucault, publicadas em um prefácio para o livro Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No texto, que completou 40 anos em 2012, Foucault caracteriza o que chamou de vida fascista, uma noção que desloca certas características do fascismo de sua pontualidade na História, ampliando-as para salientar ameaças e perigos atuais relacionados aos modos de vida das pessoas e das instituições, quando somos levados a desejar determinadas configurações de poder que exploram a vida, limitando suas potencialidades. A consequência política deste cenário, influindo diretamente sobre o corpo e o desejo, é o risco de se entender o outro, a diferença, como algo que deve ser tolerado, destituído de sua capacidade de oferecer estranhamento ou ameaça. Santiago poderia ser lido, segundo Luis, como um alegre fracasso de uma tentativa de purificação ou elevação espiritual. O pretenso jogo de mea culpa do diretor é invadido por elementos casuais que instauram algo da ordem do imponderável, interferindo no modo como ele próprio - o diretor - percebe o outro a quem filma, e a si mesmo.
Adentrando a questão da potência do anonimato, Luis Antonio salientou o perigo inerente à noção de confissão: a palavra implica em uma lógica binária do Bem/Mal, que pressupõe um pecado, uma falta. As práticas confessionais, com toda a força de sua tradição, reforçariam a busca por uma natureza essencial do Eu, quando se acredita expor algum tipo de verdade associada à vida de uma pessoa. O filme de João Moreira Salles, na leitura de Luis, coloca em cheque o Eu "confessor" e seu protagonismo, apostando na procura do anônimo quando desconfia da soberania do Eu. Na fragmentação do filme e dos anseios do diretor, abre-se o espaço para que o inominável venha perturbar o conforto das definições tidas como sólidas. Portanto, uma ética do anônimo seria definida por sua referência ao transtorno provocado pelo indefinido, pela potência impessoal que arrebata as nossas expectativas, fazendo com que o contato com a alteridade, com a diferença, seja uma forma de reavaliação e refabricação de si mesmo. Referindo-se ao filósofo e crítico literário Maurice Blanchot, Luis Antonio apresentou sua distinção entre a forma do diário e a forma narrativa. O diário, como um gênero literário, se aferra ao calendário, aos sentimentos e às vigilâncias do eu sobre sua própria vida, na busca de uma definição de si mesmo. A narrativa, diferentemente, enquanto parece narrar ou representar determinada realidade, está de fato nos trazendo aquele próprio acontecimento que narra, sua vivência para aquele que lê.
Santiago, que poderia ser confundido com uma espécia de diário de João Moreira Salles, na verdade apresenta características narrativas na medida em que pode ser tomado por um acontecimento, quando se permite, por meio da montagem e da fragmentação, trazer não uma pretensa verdade sobre seu mordomo, mas chamar atenção para os próprios procedimentos de confecção e montagem de verdades. Luis Antonio considera o ato de fragmentar como um grande legado ético do cinema para os que procuram refletir sobre a existência humana. Tendemos a fazer de nossa vida uma grande continuidade em constante aperfeiçoamento, em busca de uma completude diante da qual qualquer distúrbio ou interrupção seriam encarados como potenciais motivos de frustração. O ato de fragmentar traz a perspectiva do desvio, abrindo espaço para infinitas possibilidades de existência. Em sua conclusão, comentando a cena do filme Tokyo Story (1953), de Yasujiro Ozu - utilizada por Salles no filme -, Luis Antonio chamou atenção para o risco de se frustrar com o fracasso e a decepção que advêm quando são traídas as nossas promessas de felicidade, sempre correspondentes a apostas prévias em determinadas verdades. No caso do filme, a aposta ética de incorporar o fracasso da busca de um sentido daquilo que seria uma verdade de Santiago - ou de seu diretor - é também responsável por sua beleza. O funcionamento da ética do anônimo mostraria, antes, a beleza e a alegria do entendimento da vida como decepção, já que não se vislumbra a perspectiva da linearidade, da continuidade e do sucesso, mas a afirmação do inapreensível.
Nossa próxima sessão acontecerá no dia 3 de novembro, logo após o feriado do dia 2. Exibiremos o filme 2001: uma odisseia no espaço (2001: a space odyssey - E.U.A./Reino Unido, 1968), clássico de Stanley Kubrick e um dos maiores ícones da história do cinema e da ficção científica. Após o filme, teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Fernando Santoro, professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, doutor em Filosofia pela UFRJ, pós-doutor pela Universidade de Paris IV e coordenador do Laboratório OUSIA de Estudos em Filosofia Clássica. Ele apresentará a palestra Parmênides e a luz do luar. Anotem na agenda e divulguem! Esperamos por vocês. Até lá!
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Outubro/2012
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