No último sábado, dia 05/05, o Ciência em Foco exibiu o filme As hiper mulheres, de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro, seguido da palestra A potência de um filme comum, ministrada pelo professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, Cezar Migliorin. Chamando atenção para o desafio de se falar sobre um filme ao mesmo tempo tão próximo e tão distante de nós, Cezar iniciou sua fala marcando a relação do filme com o cinema brasileiro contemporâneo. Tanto neste filme quanto em outras produções atuais do cinema documentário, percebe-se uma relação entre a história que se conta e a encenação da vida dos personagens, configurando outro estatuto para a imagem. No filme, os modos de vida dos índios aparecem de forma não distanciada, atrelados às fabulações que eles fazem sobre si mesmos: eles não aparecem em cena como objetos a serem documentados, mas como agentes criadores do filme, como produtores das imagens.
Configura-se assim uma nova forma de se entender a imagem, cujas características dialogam com a história do cinema, sobretudo com práticas trazidas com o cinema moderno do pós-guerra. Estes elementos, veremos, também dizem respeito à relação entre a ciência e a ficção. Os primeiros filmes da história do documentário eram caracterizados por
tentativas de se esconder a presença da filmagem, com a intenção de conseguir registrar a
integralidade do documentado. Com o cinema moderno, a própria filmagem se faz presente como forma de se aproximar do universo filmado, diluindo a pureza e a objetividade que vigoravam nas anteriores tentativas de se abarcar a totalidade do objeto a ser documentado. Cezar trouxe o exemplo de Jean Rouch (1917-2004), cineasta e antropólogo francês.
Em seus filmes, Rouch colocava em cena o próprio conhecimento se construindo no contato com o outro, quando cineasta e espectador são colocados no lugar de quem acompanha o movimento do próprio conhecimento se inventando. Esta prática relacionista marca uma importante mudança de perspectiva com relação ao conhecimento: ele não é tomado como algo dado, natural, mas algo do qual eu participo e acompanho a invenção. As hiper mulheres parece se dividir em dois momentos que espelham e marcam essa passagem: no primeiro, a
imagem parece organizada segundo regras do cinema clássico, com a presença de
planos e contra-planos, a continuidade e a organização espacial
definidas de antemão. Deixa-se entrever, no entanto, a proximidade entre os que são
filmados e aqueles que filmam, abrindo espaço para um elemento de desorganização
que explicita as operações da ficção. A partir da segunda metade, quando a dança e a
música invadem a aldeia, a câmera é
também embalada pelo movimento contagiante da festa e seus preparativos, quebrando a rigidez do
primeiro momento. A festa marcaria uma mistura entre a encenação e o cotidiano, entre a memória e a fabulação, quando os limites da continuidade já não vigoram.
A realidade, portanto, seria inventada em negociação com os artifícios da ficção. Neste sentido, busca-se inspiração na lição da obra de Jean Rouch, cujos filmes encarnavam a ideia de que só se faz ciência - no caso, a etnografia - por meio de um gesto ficcional. Através dos deslocamentos dos lugares de fala, uma vez destituídos de hierarquias, a ciência e a imaginação podem ser reaproximadas, desembocando em uma espécie de transe que conecta os sujeitos e o seu entorno. O aspecto político do filme se associa à capacidade de produzir
vivências comuns a partir do cinema, promovendo o engajamento pela
criação de comunidade. No caso de As hiper mulheres, essa comunidade é evidenciada pela ausência de um corte explícito que separa dois mundos: o dos índios e o dos brancos, por exemplo. O índio está ali como alguém muito próximo, atuando e se inventando junto com o filme, produzindo modos de viver junto que dependam da força da invenção, e não de lugares pré-fixados.
Agradecemos imensamente o apoio dos realizadores do filme, e o apoio da APILRJ (Associação de Profissionais Intérpretes de Libras do Rio de Janeiro). Nossa próxima sessão acontecerá no dia 2 de junho de 2012, com o filme Árido Movie (2006), de Lírio Ferreira. Aquecendo e antecipando as discussões em torno da Rio+20, teremos a honra de receber, como convidado do mês, o professor da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ), Renzo Taddei. Ele é doutor em Antropologia pela Univ. de Columbia, em Nova York, pesquisador da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (ECO-UFRJ) e
membro do Grupo de Estudos de Antropologia da Ciência e Tecnologia
(GEACT). Ele apresentará a palestra O clima em nossas histórias e nossas histórias sobre o clima. Anote na agenda e divulgue! Até lá.
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