"A exaustão dos recursos naturais não será resolvida enquanto os padrões de subjetividade ocidentais não forem incluídos como parte fundamental do problema. [...] A insatisfação crônica do cidadão ocidental, e a forma irresponsável com que se relaciona com as coisas [...] são coisas tão importantes quanto a discussão sobre matrizes energéticas".
Renzo Taddei - Doutor em Antropologia pela Univ. de Columbia, pesquisador da
Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da ECO-UFRJ e palestrante do Ciência em Foco de 2 de junho.
Essa fissura não se limita à questão do “nordeste”, mas é ainda mais importante, ainda que menos saliente, na própria questão do clima. Somos levados a crer todo o tempo que o clima que importa está em algum outro lugar, e que só é acessível através da mediação de especialistas e equipamentos. Obviamente isso ocorre de fato, mas há efeitos deletérios nessa alienação entre os indivíduos e o meio ambiente: a questão passa a ser entendida como problema distante, vivido apenas de forma abstrata. Isso gera a atitude caracterizada pela ideia de que “eu não tenho nada com isso” – o que é exatamente o que o personagem do filme diz à avó quando percebe que esta espera que ele vingue a morte do pai. De certa forma, ele vivia a sua própria relação familiar de forma alienada, como algo abstrato, virtual, e as contingências da vida o obrigam a enfrentar a incontornável materialidade dos contextos locais. A crise ambiental atual nos confronta com esta materialidade incontornável. Se o personagem vivesse as suas relações familiares de forma mais integral, talvez o destino de todos ali fosse outro. Há responsabilidades que nos implicam, mas que não escolhemos – algo difícil de aceitar no contexto liberal em que vivemos. Mas a analogia acaba por aqui: felizmente não há morte alguma a ser vingada na questão climática (ou haverá?).
2) O fenômeno climático da seca é recorrente na filmografia brasileira.
Pode-se dizer que o cinema traz representações do meio ambiente que muitas
vezes nos forçam a pensar seus elementos a partir de sua relação com a
sociedade e a cultura. Sem entregar muito de sua fala, poderia comentar algo em
torno desta relação? Qual a importância destas perspectivas e seu papel no
cenário das discussões oficiais?
Mais do que a seca
propriamente dita, o elemento que povoou a imaginação de escritores e artistas foi
o “sertão”. Hoje, especialmente para as audiências do sudeste urbano, sertão é
quase sinônimo de nordeste rural, mas no passado a situação era diferente. Há
debates acadêmicos sobre de onde vem a palavra sertão: uma das hipóteses é que tem
origem na palavra desertão, sugerindo
a ideia de área remota e desolada; outra, sugere que a palavra vem de sertus, termo do latim que significa
entrelaçado, enredado. Na história do Brasil, o sertão sempre foi o espaço
refratário à penetração do poder oficial, das instituições de controle do
Estado. Um dos lugares onde isso é mais claro é na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A obra se ambienta toda
em Minas Gerais, em uma região que não é semiárida como o sertão nordestino, e numa
época onde sequer existia o “Nordeste”, mas tudo o que ficava acima da Bahia
era considerado “Norte”. No início, o Brasil todo era sertão; com a expansão do
Estado ao longo do século XX, houve uma redução considerável do território que
pode ser considerado sertão, nos sentidos mencionados acima: praticamente toda
a região sudeste, por exemplo, se “dessertaniza” à medida que o espaço passa a
ser ocupado por cidades e atividade agrícola em larga escala.
Desta forma, na imaginação artística o sertão funcionou, ao longo dos últimos dois séculos, como o “outro mundo” onde há liberdade em contraposição aos controles que marcam as sociedades urbanas, e onde há mais autenticidade, o que pode ser encarado por um viés romântico (como vemos em José de Alencar, por exemplo) ou onde coisas impensáveis podem ocorrer, numa espécie de mirada conradiana [referente a elementos da obra do escritor britânico Joseph Conrad (1857-1924), autor de Coração das trevas]. Mesmo com o Cinema Novo, onde há uma sociologização mais intensa do sertão, esse não deixa de ser espaço de liberdade e experimentação, como vemos em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Mas é preciso que se diga que isso tudo marca uma perspectiva de quem olha de fora. O sertão não é uma coisa, são muitas.
O que a seca faz, em
certo sentido, é ressertanizar momentaneamente
um território dessertanizado, porque ela
tem o potencial de desorganizar processos políticos e sociais locais, inclusive
no que diz respeito às instituições oficiais de poder. Em lugares onde as
variações climáticas (como as secas) são recorrentes, como no nordeste
brasileiro, em geral as relações de poder locais existem de forma associada às
epidemias de sofrimento trazidas pela seca. A infame indústria da seca é um
exemplo disso. Mas há limites em quanto as sociedades e instituições locais conseguem
se ajustar à variação do clima: secas muito intensas podem efetivamente colocar
toda uma sociedade em situação de crise, como se vê atualmente nos sertões de
Pernambuco e da Bahia.
Um segundo ponto da
questão menciona a forma como o cinema nos faz pensar o meio ambiente em sua
relação com sociedade e cultura. Há duas formas de relacionar natureza e
sociedade que parecem ser recorrentes na experiência humana. Por um lado,
usamos elementos da natureza para pensar relações sociais, coisa que na
antropologia chamamos de totemismo. A
forma como usamos figuras de animais para pensar torcidas de futebol (urubu,
gaviões, porco etc), ou como destacamentos militares usam símbolos animais (a
onça em quartéis na Amazônia), ou ainda quando nos referimos a qualidades
pessoais através de imagens animais (ao dizer que alguém “é” uma cobra, um
rato, ou uma anta), são exemplos disso. Por outro, projetamos na natureza
elementos humanos, culturais e sociais, o que, por sua vez, é conhecido na
antropologia como animismo. Desta
forma, uma tempestade é “traiçoeira”, ou uma estação chuvosa, como ouvi várias
vezes em pesquisa de campo no sertão do Ceará, pode ser “velhaca” (isto é,
promete e não cumpre). O cinema naturalmente se utiliza disso tudo como recurso
narrativo.
Além disso, nossa
percepção do ambiente é visceralmente marcada por nossas perspectivas
contextuais. Uma pesquisa que coordenei a respeito das respostas sociais e
culturais às secas do ano de 2005 – um ano em que houve secas na Amazônia, no
Nordeste e no sul do Brasil – mostrou que as populações locais não pensam o
meio ambiente como algo desconectado das demais dimensões da vida; como tais
dimensões são variáveis, a percepção do ambiente o é também. Os resultados da
pesquisa foram publicados no livro Depois
que a chuva não veio, disponível em texto integral na Internet. O problema
é que os governos centrais, como o federal, no Brasil, têm a tendência a homogeneizar
tudo com o qual se relacionam, ignorando os contextos locais; e a ciência
climática tende a pregar que o contexto local e o clima não têm relação causal
direta (especialmente quando estão contestando a capacidade do conhecimento
tradicional de produzir previsões climáticas válidas). No que diz respeito às
relações entre sociedade e clima, vivemos uma situação verdadeiramente neurótica.
O meio ambiente pode inclusive ser uma forma de eufemizar uma discussão
demasiadamente sensível em termos políticos e sociais. Um manual de infoativismo
editado na Inglaterra, por exemplo, sugere que personagens em forma de animais
sejam usados em campanhas públicas em que questões politicas sensíveis
dificultem a comunicação através de exemplos humanos.
As discussões oficiais
são, infelizmente, demasiadamente economicistas e unilineares, presas a um
utilitarismo frustrante, para levar qualquer dessas questões a sério.
3) No mês de junho, o Rio de Janeiro sediará a Rio+20, a conferência das
Nações Unidas em torno do desenvolvimento sustentável, que articulará líderes
mundiais em discussões que convidam à cooperação mundial para a melhoria de
problemas sociais. Tendo em vista o cenário de mudanças climáticas, como
abordar a participação social nestas discussões, face às diferenças culturais
que estão em jogo?
As diferenças culturais não devem ser entendidas como obstáculo às ações relacionadas à crise ambiental. Pelo contrário, são recursos importantes. É interessante observar como a biodiversidade é hipervalorizada, ao ponto de ser fetichizada, e ao mesmo tempo a diversidade de formas humanas de ser e estar no mundo é desvalorizada – por exemplo, quando se acredita, com as melhores intenções, que é preciso “educar” as pessoas que praticam queimadas para plantio, por exemplo, para que “entendam” os efeitos deletérios de algumas de suas práticas cotidianas. Projetamos o problema sobre os outros, sem perceber que esse nosso foco em informação e no pensamento, ou seja, ao diagnosticar tudo como “falta de informação” ou diferentes “formas de pensar”, é parte fundamental do problema. Tudo ficou cibernético demais, de forma que as questões morais e éticas nos escapam muito facilmente.
A ideia de que
diferenças culturais dificultam a construção de um entendimento mundial sobre
as questões ambientais em geral, e sobre a questão climática, em particular, me
assusta. A própria ideia de “entendimento mundial” em torno do meio ambiente evoca
perigosamente um centralismo pouco democrático. Nunca na história da humanidade
houve uma tentativa tão articulada para a criação de um discurso único sobre o
meio ambiente. A polarização política que se vê nos Estados Unidos, em torno da
questão climática, é uma farsa: o comportamento do partido republicano mostra
com clareza que se trata de uma disputa pelo poder, onde os envolvidos se
comportam estrategicamente e defendem qualquer posição que maximize suas
chances de vitória. E, acima de tudo, apresentam o problema climático como se
houvesse apenas duas alternativas – aceitar ou negar o efeito das ações humanas
nas mudanças climáticas –, mas as duas são validadas dentro do mesmo paradigma
ocidental, exacerbadamente materialista e utilitarista. E as outras formas de
pensamento e de vida, outras epistemologias e ontologias? Como diz o antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, é preciso aprender a pensar “com” os outros. Segundo
o pensamento ameríndio, por exemplo, ao invés de tomar os humanos como excepcionais
em sua humanidade, há a ideia de que a humanidade é a essência comum de todos
os seres vivos. Que tipo de ética e moralidade decorre dai, na relação entre
humanos e não humanos? Não se trata de romantizar as formas indígenas de vida,
mas apenas de mostrar como outros pensamentos são extremamente interessantes na
abordagem dos problemas ambientais.
No meu entender, o que sobressai nesta questão da participação social e da multiplicidade cultural é o fato de que é preciso que os ocidentais, e nós, ocidentalóides, entendamos que há dimensões do problema que transcendem a materialidade e o utilitarismo. A exaustão dos recursos naturais, por exemplo, não será resolvida enquanto os padrões de subjetividade ocidentais não forem incluídos como parte fundamental do problema. Não adianta criar esquemas institucionais para evitar a “tragédia dos comuns”, por exemplo, sem lidar com os temas da satisfação e da responsabilidade. A insatisfação crônica do cidadão ocidental, e a forma irresponsável com que se relaciona com as coisas (ao pagar os governos municipais para “sumir” com o nosso lixo, sem que nenhuma pergunta seja feita, de modo que não precisemos pensar mais nele, por exemplo), são coisas tão importantes quanto a discussão sobre matrizes energéticas.
4) Contraplanos - expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua
sensação com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes
palavras:
- tempo e clima: clima
é um ponto de vista[1]; tempo é a vista (a partir) de um ponto[2] (notas: [1]
Clima é “ponto de vista” no sentido de que trata-se de uma construção abstrata,
resultante de cálculos estatísticos sobre medições de indicadores atmosféricos
em intervalos amplos de tempo, e onde as técnicas estatísticas, o termômetro e
outros mediadores técnicos têm tanta importância quanto a vibração das
partículas que o termômetro busca medir; [2] tempo, no sentido dado ao conceito
pela meteorologia, é o fenômeno atmosférico que existe num prazo de tempo mais
curto, e portanto tende a fazer referência ao fenômeno em si, enquanto
singularidade experiencial, ou seja, coisas que vivemos e lembramos, porque nos
afetam num tempo e espaço específicos, e desta forma são a experiência a partir
de um ponto).
- sustentabilidade: o
que exatamente se está tentando sustentar? Precisamos pensar a “mutabilidade”
tanto quanto sustentabilidade. É muito difícil mudar o (insustentável) sistema
econômico em que nos encontramos, e é preciso atentar para o fato de que, sob a
fachada de “sustentabilidade”, há um esforço imenso de mudar apenas o que é
necessário para que nada mude no final. O mercado de carbono é o exemplo
paradigmático disso. Ou seja, em geral os debates sobre sustentabilidade (e
sobre adaptação, resiliência etc.) são conservadores e insuficientes.
- construção social: já
não há mais muita clareza a respeito do que significa tal associação de termos (o
que é bom). Se tudo é construção social, a ideia deixa de ser relevante, porque
não explica muita coisa. Tudo está em fluxo; se é “construção”, e se é
“social”, depende de qual jogo semântico se está jogando. A expressão diz mais
a respeito de quem usa a expressão do que sobre o fenômeno em questão. Tenho a
impressão que dizer que o clima, por exemplo, é uma “construção social”
constitui uma forma de evitar levar o clima a sério – e aqui estou repetindo
ideias de autores como Bruno Latour ou Roy Wagner, por exemplo.
- ciência e cultura: há
muito menos clareza a respeito do que significam tais termos (o que é melhor
ainda). Num sentido mais propriamente filosófico, são duas ideias que morreram no
século XX. Ou seja, tanto a Ciência como a Cultura, assim com “c” maiúsculo,
que constituíam o santo graal do pensamento acadêmico Europeu dos séculos XIX e grande
parte do XX se mostraram quimeras, principalmente em função dos trabalhos de
gente como Heidegger, Merleau-Ponty, Wittgenstein, Gadamer, dentre muitos outros.
Sobraram “ciências” e “culturas” com “c” minúsculo, ou seja, tais conceitos se
transformaram em problemas empíricos. Puxando a sardinha pro meu lado (risos),
se tornaram problemas antropológicos.
5) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos,
vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam
contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se
quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.
No meu blog Uma (In)certa Antropologia (http://umaincertaantropologia.org) mantenho um arquivo de notícias e materiais acadêmicos
sobre as relações entre cultura, sociedade e o clima. Há lá uma gravação em
áudio de uma apresentação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que toca no
tema das mudanças climáticas como crise do Ocidente, e como outros povos e
outras culturas se relacionam com isso, que vale a pena ser ouvida. Ela está no
link http://www.taddei.eco.ufrj.br/ViveirosdeCastro_IFCS_20111123.wav.
O livro Depois
que a chuva não veio, mencionado acima, está disponível no link http://www.taddei.eco.ufrj.br/DQACNV.htm.
O documentário “10 tacticts for turning
information into action”, também mencionado acima, está no site http://informationactivism.org/original_10_tactics_project#viewonline, com subtítulos em português – o exemplo de
uso de animais como personagens está na tática número 3.
Há um vídeo provocativo do Slavoj Žižek, cujo
título é Ecology as Religion, que
evoca discussões importantes sobre como o meio ambiente existe no senso comum e
nas discussões políticas. O video está reproduzido em http://umaincertaantropologia.org/2012/04/12/slavoj-zizek-on-ecology-as-religion-youtube/
6) Como conhecer mais de suas produções?
Há uma lista de artigos acadêmicos e também escritos para jornais e
revistas em meu website, no link http://www.taddei.eco.ufrj.br/Textos.htm
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