No dia 3 de agosto, o Ciência em Foco exibiu o filme A máquina do tempo (The time machine - EUA, 1960), clássico de George Pal baseado no livro de H.G. Wells. Após o filme, o professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Jorge de Albuquerque Vieira, apresentou a palestra Ficção e produção de conhecimento. Embora o filme também convide a um debate sobre a filosofia do tempo - o que poderia levar a uma série bem mais longa de encontros - a preocupação tanto de Pal quanto de Wells parece se voltar a outras áreas da ciência, levantando questões ligadas à sociologia, à economia e à política. Neste sentido, o filme consegue traduzir o espírito da obra de Wells, ao colocar em cena a preocupação com um possível destino da espécie humana. Tanto o filme de Pal quanto o livro de Wells motivaram a discussão em torno do que significa uma ficção. Afinal, por que criamos ficções? Seria a ficção uma espécie de produção inútil, passível de ser entendida como uma mera distração? Jorge indagou se a ficção não teria uma finalidade cognitiva, aproximando-a de características do conhecimento: todo conhecimento tem como principal função manter a sobrevivência de um sistema vivo. Toda troca com o ambiente já se configuraria como uma espécie primitiva de conhecimento. Como pensar o fato curioso de nós, humanos - supostamente seres mais complexos na escala evolutiva -, nos dedicarmos a criar ficções?
Se a produção de conhecimento ficcional parece ter uma certa finalidade, haveria algum motivo para que certas ficções fossem inventadas. Vejamos a arte: os artistas lidam com a ideia de possibilidade, com as realidades possíveis, e não diretamente com aquilo que seria real. Não seria uma condição tão distante da ciência, que se baseia em uma hipótese de natureza realista-objetivista: admite-se uma realidade e procura-se guiar por ela. Todos os critérios e refutações científicas são sempre baseados nesta possível realidade, que parece não depender de nós. Portanto, o fato de se prever realidades é uma estratégia evolutiva baseada na tentativa de se entender não apenas o que a realidade é, mas o que ela pode ser. Dos tipos de conhecimento baseados em possibilidades o mais representativo deles, além da própria ciência, é a arte. Pode-se encontrar estudos de possibilidades da realidade na maioria dos autores de ficção científica, não apenas com ênfase na ciência mas na poesia ou na sociologia - esta bastante enfatizada por Wells em "A máquina do tempo". Muitas pessoas concebem o conhecimento científico separado do conhecimento artístico, como dois domínios excludentes. No entanto, aqueles que já se envolveram profundamente em atividades de pesquisa científica já devem ter se deparado com momentos de impasse, diante dos quais só nos resta criar, inventar. A partir destes casos, percebemos que o conhecimento científico não se reduz a uma mera descrição do real, já que a realidade nunca nos é dada. Como a maior parte dos aspectos da realidade estão profundamente afastados de nós, só nos resta um jeito quando queremos conhecê-la: lançar mão da invenção, fabular uma realidade e depois testar a invenção com rigor, conjecturas, sem esquecer que o que estamos submetendo a teste são ficções. Passamos, portanto, a dar certos atributos a criações que descrevem bem o mundo.
Jorge trouxe o exemplo da teoria da curvatura do espaço-tempo quadridimensional, que aparece na discussão do início do filme. De acordo com ele, as grandes teorias científicas são ficções: a partir de testes, recolhem-se indícios que mostrem, de modo indireto, se determinada ideia é boa. Einstein buscou indícios da curvatura do espaço-tempo apenas após experimentar um momento de criação, de invenção, que se aproxima do conhecimento artístico. É por isso que os grandes avanços científicos podem ser considerados atos de criação. Dividindo as ficções em dois grandes grupos, teríamos as ficções puras e as ficções eficientes, ou seja, de um lado as ficções mais ou menos livres e, de outro, as ficções mais ou menos especificadas, no sentido de serem eficientes na descrição ou representação de uma realidade fora do nosso alcance. No entanto, estes dois tipos não se contaminariam? Jorge trouxe um exemplo desta contaminação quando lembrou de suas leituras de ficção científica na adolescência, quando travou contato com o livro "A nuvem negra" (The dark cloud, 1957), de Fred Hoyle. Seu interesse pelo romance se deveu aos seus interesses de pesquisa científica naquela época. Anos mais tarde, já trabalhando com radioastronomia, descobriu que o autor do romance não só era um cosmólogo inglês, como também que seu livro de ficção tornou-se referência para muitos pesquisadores sobre as discussões científicas em torno de possibilidades de vida no Universo. Aquilo que ele havia conhecido como ficção científica, anos atrás, havia se tornado modelo científico anos mais tarde. Deste modo, longe de ser uma mera atividade supérflua, dispensável, não seria arriscado dizer que toda atividade artística é produção de conhecimento, assim como a ficção. Quando se faz ficção, ainda que não se saiba, procura-se captar alguma possibilidade do real. Muitas vezes essa conexão existe, independente do artista.
Há um motivo para isso, parece, de natureza evolutiva. Os seres humanos interagem com a realidade recolhendo os seus sintomas e depois codificando-os em suas redes neuronais. Deste modo, os sinais da realidades nos atingem e deverão ser traduzidos, transduzidos. Toda codificação, no entanto, possui limitações. As representações que criamos para lidar com o mundo e sobreviver são limitadas, além de extremamente especializadas, em comparação com outras espécies. A história evolutiva individual de cada um define os "filtros" seletivos a partir dos quais percebem e se relacionam com o real, englobados na concepção de Umwelt: termo que designa "mundo em torno", "mundo em volta", o universo perceptual de cada espécie, na concepção do biólogo estoniano Jakob Von Uëxkull (considerado hoje o pai da biossemiótica). Deste modo, a umwelt humana delimitaria aquilo que nos coube no jogo evolutivo. A questão passa a ser: como descobrir algo que se encontra para além da nossa percepção biológica individual? A resposta se insinua na nossa capacidade de expandir este nosso universo perceptual, na medida em que ele se torna não meramente biológico, mas também psíquico, psicossocial, social e cultural. Somos capazes agora de criar ficções, ao recorrer a signos para representar certos aspectos da realidade fora de nosso universo biológico. Na perspectiva de Jorge, nenhuma ficção é completamente pura, mas sempre baseada em uma possibilidade real. Do mesmo modo, estaríamos sempre lidando, na nossa experiência do mundo, com processos criativos ligados à produção de conhecimento. Estes processos não seriam restritos a determinadas áreas ou domínios, mas provariam antes a necessidade de sua mútua contaminação.
Nosso próximo encontro acontecerá no dia 7 de setembro. Exibiremos o filme Um lugar na plateia (Fauteuils d'orchestre - França, 2006 - 106 min.), de Danièle Thompson. Após a projeção, teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, o filósofo, psicanalista e professor da UFRJ André Martins, doutor em Filosofia pela Université de Nice, França, e em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Ele apresentará a palestra Reflexões sobre o sentido imanente da vida. André já publicou vários livros, dentre eles, “Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência” (Ed.UFRJ, 2009). Na ocasião, também sortearemos alguns exemplares de seus livros publicados. E por falar em livro, em breve acontecerá o lançamento do nosso segundo volume, Ciência em Foco, volume 2 - Pensar com o cinema, uma co-edição entre a Casa da Ciência da UFRJ e a editora Garamond, com o apoio do CNPq. Fiquem ligados no blog para mais informações. Até o dia 7 de setembro!
(…) – o real e o sonho. Porque o real teria suas conexões lógicas, suas figuras próprias; e o sonho, como o imaginário, seria uma espécie de… Dali no real ― algo como um esticamento, uma decomposição dos princípios do real. Então, no orgânico, real e imaginário se opõem, estão em relação de oposição. Por exemplo, você vai ler um romance. Você vai ler, O Amante de Lady Chatterley. Você está lendo O Amante de Lady Chatterley. Aí, o Lawrence faz uma narrativa e aquela é a narrativa real. Se por acaso em algum momento ele contar alguma coisa que estaria se passando na mente do Mellors ou da Lady, ele terá investido no imaginário, terá investido no sonho. E nós, os leitores, temos essa oposição muito clara: o sonho tem seus princípios, suas regras; e o real tem também suas próprias regras.
ResponderExcluirQuando nós passamos para o cristalino, desaparece a oposição entre o real e o imaginário. O real e o imaginário se tornam INDISCERNÍVEIS.
Eu vou tentar usar um exemplo para desencadear a aula. Um bom exemplo é o cinema do Tarkovski, no qual você nunca sabe se o que está se passando é um sonho, se é real ou é imaginário. (Mas, pela reação de alguns, acho que o Tarkovski não pegou muito bem para todos…)
Quando você vai ao cinema, geralmente os diretores chamados diretores B colocam o real, uma determinada luz e uma determinada postura da câmera. E quando passam para o imaginário ou para o sonho, eles costumam desfocar; mudar, inclusive, a postura da câmera… Então, eles distinguem o real do sonho, colocando-os claramente em oposição. Inclusive eles alteram o movimento dos personagens…
Agora, quando você passa para o cristalino, o sonho e o real são indiscerníveis. Você nunca pode precisar se aquilo é um sonho ou se é uma realidade. É o que eu estou dizendo, você pode citar até o Godard onde você tem o real, o sonho, o imaginário… tudo misturado. Você não sabe exatamente o que está se processando ali.
A nossa dificuldade de aceitar essa indiscernibilidade é porque o nosso espírito está mergulhado, está enraizado na representação orgânica; é que nós raciocinamos sempre em termos de oposição, sempre em termos de opostos. Nós nunca temos essa noção de indiscernibilidade, porque o indiscernível pertence ao cristalino.
Foi o ponto de partida!
A partir de agora, nós vamos trabalhar no orgânico. Vamos dizer exatamente o que é o orgânico… tentar dizer o que é o orgânico, pra poder entrar no cristalino sem que o orgânico se torne um obstáculo para isso.
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