"Essa imagem libertária da internet como 'terra de ninguém' é uma imagem
de literatura de aeroporto. A batalha que tem de ser travada hoje é para
impedir o monopólio de informações, de estarmos todos à disposição dos grandes
distribuidores de informação. Um exemplo dessa apropriação do ciberespaço é o facebook,
que considero uma ágora muito atraente e sedutora, que por isso mesmo reúne um
número de pessoas da ordem das centenas de milhões, mas uma ágora também muito
esquisita, um espaço público muito suspeito, porque na verdade é um espaço totalmente
privado e controlado".
Henrique Cukierman - Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Professor do PESC/COPPE, da POLI/UFRJ, do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ) e palestrante do Ciência em Foco de março de 2013.
1)
A articulação entre o
conhecimento científico e a tecnologia de destruição deixou marcas profundas no
século XX e no ideal de razão que a busca pelo progresso pressupunha. De que
modo os computadores e máquinas de informação, surgidas e aplicadas no contexto
da Guerra Fria, admitiam também este duplo aspecto de promessa e ameaça?
A pergunta faz crer que a ambiguidade
do conhecimento que se constitui através dos artefatos é um privilegio da
modernidade. Não é, pois essa ambiguidade vem de longe; porém é preciso
reconhecer que o que mudou a partir do século XX foi a sua escala, que se tornou,
digamos, 'dramática', a partir da ameaça atômica. Promessas e ameaças não são
privilégio do computador ou das máquinas de informação, mas é com elas que
decisões e respostas podem ser tomadas em frações de segundo. E foi para poder
tomar essas decisões no caso de uma eventual guerra nuclear que se realizaram
os esforços e vultosos investimentos para a materialização de um artefato como
esse. De resto, vale lembrar o que afirma o historiador da tecnologia Melvin
Kranzberg, “a tecnologia não é nem boa, nem ruim e também não é neutra”. Em
suma, a sua pergunta é muito mais
problemática do que parece.
Aliás, esse é o tema do filme: uma
máquina que decide pela antecipação do Juízo Final. A escala temporal de uma
ameaça atômica é ínfima. Não haveria margem para decisão humana, ao menos
conforme concebido e teorizado nos primórdios da Guerra Fria. Novamente,
gostaria de invocar a historicidade desses artefatos de guerra. O conhecimento
ao longo dos séculos esteve sistematicamente associado à fabricação de máquinas
de guerra, como as catapultas, o arco e flecha, muito antes do Iluminismo, da
Guerra Fria. Máquinas que sempre apresentaram esse duplo aspecto de promessa e
ameaça. Por exemplo, o arco e flecha podiam garantir a caça e matar o inimigo.
O que muda com o século XX é a escala. A ameaça passa a ser apocalíptica: o fim
da vida humana sobre o planeta. E é esse o cenário que a Guerra Fria invoca.
Fazem parte desse cenário apocalíptico os artefatos de informação porque, como
já disse, as decisões têm que ser tomadas em frações de segundos. Na história
do desenvolvimento do computador, artefato por excelência do século XX, um de
seus temas recorrentes, inclusive do filme, é o dilema da transferência do
poder de decisão do humano para o maquínico, e, por consequência, o amálgama
entre homem e máquina. Se o conhecimento há tempos está a serviço da dupla
convocação pela promessa e pela ameaça, desse “acender uma vela para Deus e
outra para o Diabo”, é preciso reconhecer essa diferença crucial do século
passado frente aos anteriores, quando ainda não havia elementos para se pensar
que o próprio planeta poderia ser destruído por uma guerra.
2)
Para os consumidores atuais dos
avançados produtos da tecnologia da informação e da comunicação, é comum
relacionar seus benefícios ao progresso e aos avanços da ciência. Neste
cenário, muitas vezes os produtos da técnica parecem figurar como
desdobramentos naturais da pesquisa científica, admitida como neutra e isenta
de interesses. No entanto, como situar as trocas e a dimensão política da
relação entre a ciência e a sociedade? Que desafios enfrenta hoje a comunicação
pública da ciência?
Seria preciso acreditar na ideia de
progresso. Eu não acredito. A ideia de progresso é a promessa da ciência. É a
de que marchamos para um mundo cada vez melhor, de forma contínua e por mera
acumulação de conhecimentos. Nesse sentido, a realidade existiria por si, em
si, seria anterior a quem a observa, a estuda e a analisa. A ciência, porque teria
um método de apreensão do real que seria anterior a quem estuda esse real,
porque teria a capacidade de se aproximar cada vez mais, ainda que
assintoticamente, das leis que comandam a realidade, estaria cada vez mais
próxima desse mundo 'sob controle', daí a ideia de progresso. Assim como a ideia
de que o conhecimento científico, por ser apenas um 'reflexo' do real, do que 'está lá', sem a interferência de juízos de valor, de preconceitos, de
interesses, é neutra e universal. Portanto, não se aventa a hipótese de que
esse real é construído por quem o investiga. E que todo conhecimento, longe de
ser universal e neutro, é situado e distribui seus efeitos de forma bastante
assimétrica, contrariamente ao pressuposto da neutralidade. O átomo, a gripe, o
computador não 'estão lá' desde sempre e 'por lá' permanecerão para todo o
sempre. São entidades que surgem relacionalmente, nas relações entre humanos e
não humanos. Não são relações definidas, predeterminadas: se fazem nos
encontros. Nesse sentido, o desafio da comunicação pública da ciência é não
endossar a ideia de que a ciência é neutra e universal, ou dito de outra forma,
que a realidade é dada. Toda a construção de conhecimento envolve opções sobre
o mundo em que desejamos viver. Sobre mundos possíveis, sobre versões de mundo.
Há muito dinheiro para a divulgação da ciência porque ela promete o melhor dos
mundos. Supostamente, é isenta, neutra, está além dos valores, das paixões,
paira acima do tempo e do espaço, tem uma configuração de absoluto. A
comunicação científica existe para endossar essas promessas maravilhosas. O
desafio é conseguir se libertar desse patrocínio da ciência hegemônica, a que
defende com unhas e dentes a sua universalidade e neutralidade. Veja bem, não
estou me colocando contra a ciência, contra a eficácia de seus conhecimentos,
mas apenas querendo lhe propor um lugar menos 'sagrado', um status um pouco
mais modesto.
É importante ter em mente que para nós,
brasileiros, essa não é uma discussão filosófica, ilustrada, erudita. Nós somos
consumidores da tecnociênca moderna, importamos muitos conhecimentos, como os
computadores e os softwares. Junto importamos o mito de que esses artefatos e conhecimentos
são universais e neutros. Temos a ideia de que se eles servem para os
americanos e europeus, servem para nós também. Porém, nosso desafio é o de construir
um conhecimento local para enfrentar nossos problemas, nossas doenças, nossa
violência urbana, nossas questões de saneamento, transporte etc. Quando
importamos os conhecimentos, parecemos importá-los sem contexto, mas eles não
são livres de contexto. Temos opções: podemos desenvolver um conhecimento
próprio acerca dos nossos problemas, coisa que a nossa academia parece
desconhecer.
3) Hoje, com a internet, estamos assistindo a uma nova espécie de guerra
ligada diretamente à informação. Como pensar este momento atual, e quais seriam
as suas particularidades em relação ao contexto mostrado no filme? Onde situar
hoje a ameaça das estratégias desenhadas pelo Dr. Fantástico?
Uma guerra atômica só pode existir de
forma simulada. Nesse cenário, todo o campo da comunicação e da decisão se
desenvolve fortemente comprometido com a simulação. Nos laboratórios de guerra
e nas salas de vigilância e monitoramento, como a sala de guerra do filme, são
produzidas, com a ajuda dos computadores, simulações de guerra a partir das quais,
eventualmente, poderiam ser acionados os botões de armas fatais. Vários
cenários em que vivemos no mundo conectado pela internet estão relacionados à
questão da simulação. Para ser mais exato, e mais complexo, pela imbricação
entre o simulado e o real; o ficcional e o real. Por exemplo, a crise de 2008,
segundo consta, foi provocada pelos derivativos, um
produto simulado por computador, mas ao mesmo tempo negociado em mercados. Até
mesmo a estratégia do controle central da Guerra Fria ainda persiste na
governança da internet, a despeito da ideia corriqueira de que a rede seria uma
topologia descentralizada e sem governo.
O computador materializou a ideologia
do C3I – comando, controle, comunicação, informação ou inteligência. Basicamente,
uma ideologia destinada a trazer para um nó privilegiado de uma rede o controle
sobre um vasto cenário. Essa estratégia C3I está aí, sofisticadamente, nos
games. Aliás, é bom que se diga que a indústria dos games é filhote das
simulações de guerra. E, à luz da história, o que hoje se conhece como
computador resulta do desenvolvimento de uma máquina construída para operar a
defesa aérea norte-america, o Sage, por
sua vez filha de um projeto de simulação, o projeto Whirlwind, destinado à construção de um simulador de voo. Até
então, o computador era basicamente uma calculadora eletrônica 'a jato', feita
para acelerar cálculos matemáticos, conectados em especial aos problemas
militares do cálculo balístico. Fazer do computador um simulador e, mais
adiante, um processador de símbolos e um tomador de decisões, enfim, um
dispositivo não mais de cálculo mas, e principalmente, de comunicação,
relaciona-se de forma muito estreita com a questão militar norte-americana dos anos
50, a saber, a de prover o seu complexo armamentista com um sistema de defesa
antiaérea. A única estratégia disponível era a ofensiva: tratava-se pura e simplesmente
de colocar uma bomba atômica no avião e atacar o inimigo letal e irreversivelmente.
Porém, não havia estratégia de defesa. Então desenvolveram essa ideia do
comando centralizado, dos computadores em rede controlando o tráfego aéreo,
articulando de forma centralizada as mais diversas observações do espaço aéreo,
desde observadores humanos auxiliados por binóculos até aviões munidos de
radares. Uma vez transmitidas essas observações às salas de comando e controle,
o computador poderia simular a posição futura do avião inimigo, e, assim,
prover sua interceptação em uma ação tipicamente defensiva.
Portanto, a partir do momento em que o
computador tornou-se um simulador, passou-se a trabalhar com a realidade como
resultante de uma simulação, uma 'realidade-simulação'. O filme fala justamente
sobre uma máquina desse tipo, projetada para trabalhar com uma simulação, a que
torna real a proximidade imediata e irrevogável do artefato nuclear inimigo,
uma máquina programada para responder com uma retaliação massiva e definitiva;
daí sua denominação de 'máquina do juízo final'.
Voltando à questão da internet, ela
possui hoje uma hegemonia ligada ao comércio eletrônico. Como já disse, a ideia
de que ela é uma entidade anárquica e sem controle é errônea. A questão da
governança está colocada à mesa desde os primórdios da internet. Se você pensar
a internet como uma rede de circulação de informação, os conteúdos, em
princípio (e somente em princípio!), são livres. O que certamente é
absolutamente controlado é o endereçamento. Você pode imaginar (para fins
ilustrativos) uma realidade com um computador central que tem um catálogo com
todos os endereços da rede, sem o qual é impossível a comunicação: não por
acaso esse 'catálogo' se encontra sob a guarda do departamento de comércio
norte-americano. A internet nasceu como uma rede de redes, e, de certa forma,
foi banhada pelos ideais libertários dos anos 60 da democracia da informação.
Ao longo do tempo, o comércio foi paulatinamente tomando conta da rede; a informação
foi se tornando monopolizada e ficando na mão dos grandes grupos. A internet
tem uma governança, um controle sobre seu endereçamento em mãos norte-americanas,
o que é motivo de uma disputa acirrada com as demais nações. Essa imagem
libertária da internet como 'terra de ninguém' é uma imagem de literatura de
aeroporto. A batalha que tem de ser travada hoje é para impedir o monopólio de
informações, de estarmos todos à disposição dos grandes distribuidores de
informação. Um exemplo dessa apropriação do ciberespaço é o facebook, que
considero uma ágora muito atraente e sedutora, que por isso mesmo reúne um
número de pessoas da ordem das centenas de milhões, mas uma ágora também muito
esquisita, um espaço público muito suspeito, porque na verdade é um espaço totalmente
privado e controlado.
Neste sentido, a internet não é muito
diferente do resto: é um espaço de luta, em que a gente deve escolher em que
mundo quer viver. Não é diferente da discussão sobre Belo Monte, por exemplo.
Qual é o mundo no qual queremos viver? Para que serve a internet, para quem
serve a internet? Esse é um campo de disputa em aberto.
4) Contraplanos – expresse em poucas palavras (ou apenas uma) sua sensação
com relação aos sentidos e problemáticas evocadas pelas seguintes palavras.
- informação: híbrido de presença e
ausência, conexão parcial entre matéria e forma. Informação é uma forma que se
referencia a uma matéria, ao mesmo tempo em que a constitui. Quando se tem uma
informação, alguma coisa é trazida, mas sempre alguma coisa é deixada de fora. Na
medida em que algo é sempre deixado de fora, a informação acaba produzindo uma
unidade e uma coerência ultraproblemáticas. Dito de outra forma, é um híbrido
que ao deixar de fora, ao constituir uma ausência, ao operar, portanto, uma
simplificação, uma redução de complexidade, ao mesmo tempo produz uma
amplificação, uma ampliação de escala,
um foco aumentado sobre um detalhe ou uma versão de mundo. É, portanto, um
híbrido de amplificação e redução.
- ciência e cultura: caminhos de
conhecimento confiáveis ou caminhos de produção de um conhecimento confiável.
- sociotécnica: indissociabilidade do
técnico e do social. É como imaginar um pano sem costura, um tecido inconsútil,
que não pode ser separado em 'técnico' e 'social'.
5) Roteiros alternativos – espaço dedicado à sugestão de links, textos,
vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam
contribuir com a discussão.
Paul N.
Edwards. The Closed World: Computers
and the Politics of Discourse in Cold War America. Cambridge: MIT Press, 1997.
6)
Como conhecer mais de suas
produções?
Acessando meu Currículo Lattes (risos).
E lendo o meu livro:
CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós
temos Pasteur. Manguinhos, Oswaldo Cruz e a História da Ciência do Brasil.
Rio de Janeiro: Relume Dumará/Faperj, 2007.
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