quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Do onirismo pop à ontologia onírica


No último sábado, o Ciência em Foco abriu suas portas para o mundo dos sonhos, com a exibição de A origem (Inception) seguido da palestra Sonhos & Ação! O onirismo pop de Christopher Nolan, por Nelson Job, doutor e pós-doutorando em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia pelo HCTE/UFRJ. O público compareceu em peso para ouvir e debater questões que evocam uma verdadeira viagem por diversas áreas do conhecimento. De início, Nelson ressaltou o fato de Christopher Nolan ser um dos poucos diretores atuais capazes de articular um cinema blockbuster, permeado de cenas de ação, com um cinema autoral, incorporando em seus filmes alguma produção conceitual que estimula o pensamento. Foram comentadas as influências cinematográficas do diretor, dentre as quais estavam incluídos alguns filmes que já foram discutidos no Ciência em Foco, como Blade Runner e Cidade das sombras. Alguns elementos de A origem podem ser percebidos como citações mais explícitas de seu diretor, como o modelo da escada de Penrose, que inspirou o artista M. C. Escher que, por sua vez, é uma inspiração direta para a construção de várias outras cenas do filme. Outra referência pode ser encontrada na mitologia: o fio de Ariadne que ajuda Teseu a escapar do labirinto do minotauro. Ariadne fornece o nome para uma das personagens-chave do filme. Diversas referências e citações foram apontadas na cultura pop, na história da ciência, na filosofia e na arte. Após fazer um panorama da obra de Nolan e comentar as características de todos os seus filmes, a palestra adentrou o universo onírico presente em A origem.

Nelson nos apresentou a noção de ontologia onírica, que trata dos níveis da realidade e a relação dos sonhos com a realidade. Foi feito um panorama histórico da noção de sonhabilidade do mundo, no qual foram comentadas as perspectivas do hinduísmo - que considera o mundo como um sonho de Deus -, a do taoísmo - que incorpora o sonho na realidade - e as do xamanismo e da magia em geral, que movimentaram, no século XX, os interesses, por exemplo, da literatura de Carlos Castañeda e seus diversos níveis do sonhar, como também dos estudos da antropologia e suas pesquisas de campo com xamãs e experiências do êxtase. Ao longo da história, o que se percebe é uma perda de importância atribuída ao sonho, para a qual diversas causas foram apontadas, dentre elas a perseguição aos profetas e intérpretes oníricos pela Igreja - o que teria contribuído para uma compreensão negativa do sonho. No entanto, o detalhe que parece mais importante é a mudança operada no conceito de linguagem a partir do século XVII. Até então, entendia-se a linguagem a partir da conexão entre as palavras e as coisas, entre o que dizemos e a realidade a que nos referimos. Esta relação - que legitimava, por exemplo, a conjuração mágica - se desfez e deu lugar à noção de representação, a partir da qual a palavra perdeu sua continuidade ontológica com as coisas, sua relação direta com a realidade a que antes se referia.

Com  isso, começaram a aparecer diversas outras separações lá onde não havia antes, favorecendo o surgimento de dualidades: entre natureza e cultura; entre sujeito e objeto; entre conteúdo e expressão; entre sonho e realidade. Impulsionado pela filosofia de Descartes, o próprio pensamento passou a ser compreendido de forma dualista, na qual o corpo e a mente possuem naturezas distintas. Neste cenário, o sonho passou a ter cada vez menos relevância e realidade. Apenas no século XIX os sonhos recuperaram sua seriedade, a partir do debate científico e filosófico trazido por Sigmund Freud. Porém, os sonhos eram abordados a partir de seu aspecto representativo: eles não eram considerados em si, mas enquanto representações de outros conteúdos. Nelson enumerou diversos pensadores que passaram a investir suas pesquisas para além da representação dos sonhos, rumo à sua assimilação na realidade. Foram citados Carl Jung -  quem chamou atenção para a questão da assimilação dos sonhos, embora seu sistema tenha permanecido no aspecto interpretativo -, Félix Guattari, que operou uma crítica a Freud atentando para a distribuição de elementos oníricos pelos mais variados aspectos da vida -, e finalmente María Zambrano, que considera a magia como uma primeira tentativa da Humanidade no sentido da concretização e da realização de sonhos. Diante destes desdobramentos, Nelson lançou uma indagação: não seria todo exercício da Humanidade uma tentativa de trazer os sonhos à realidade?

Uma referência filosófica à qual A origem se mostra bastante fiel é o cone da memória, um esquema proposto por Henri Bergson no final do século XIX, em sua obra Matéria e memória. A dimensão virtual do tempo é representada pelo cone que se expande, desde o presente - seu vértice -, dando acesso ao atemporal, à totalidade dos tempos. Este movimento corresponde à temporalidade vivenciada pelos personagens do filme, para os quais o tempo se alarga a cada nível mais profundo do sonho. Nelson também comentou ressonâncias das questões abordadas pelo filme com pesquisas da física do século XX, como o conceito de emaranhamento quântico, e as posteriores especulações de Roger Penrose em torno de uma consciência quântica, que favorece a relação de nossas mentes até mesmo com outras partes do universo. Seriam os sonhos uma espécie de jornada cósmica?

Com as múltiplas questões do público, o debate se estendeu aprofundando alguns temas discutidos e trazendo novas questões. Eis uma prova de que o labirinto de A origem pode nos deixar alegremente emaranhados no fio de Ariadne, diante de um inesgotável manancial de possibilidades a serem discutidas. Para continuar a discussão, não deixe de visitar o blog Cosmos e Consciência, editado pelo Nelson Job, e também um artigo publicado por ele na revista Cosmos e Contexto. Nossa próxima sessão acontece no dia 6 de outubro de 2012, o primeiro sábado de outubro, com a exibição do filme Santiago (2007), de João Moreira Salles. Teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Luis Antonio Baptista, psicólogo e professor titular do Departamento de Psicologia da UFF, com a palestra A ética do anônimo. Baptista é doutor em Psicologia pela USP e pós-doutor pela Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma 'La Sapienza'. Anote na agenda e divulgue! Até lá!









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