Nelson nos apresentou a noção de ontologia onírica, que trata dos níveis da realidade e a relação dos sonhos com a realidade. Foi feito um panorama histórico da noção de sonhabilidade do mundo, no qual foram comentadas as perspectivas do hinduísmo - que considera o mundo como um sonho de Deus -, a do taoísmo - que incorpora o sonho na realidade - e as do xamanismo e da magia em geral, que movimentaram, no século XX, os interesses, por exemplo, da literatura de Carlos Castañeda e seus diversos níveis do sonhar, como também dos estudos da antropologia e suas pesquisas de campo com xamãs e experiências do êxtase. Ao longo da história, o que se percebe é uma perda de importância atribuída ao sonho, para a qual diversas causas foram apontadas, dentre elas a perseguição aos profetas e intérpretes oníricos pela Igreja - o que teria contribuído para uma compreensão negativa do sonho. No entanto, o detalhe que parece mais importante é a mudança operada no conceito de linguagem a partir do século XVII. Até então, entendia-se a linguagem a partir da conexão entre as palavras e as coisas, entre o que dizemos e a realidade a que nos referimos. Esta relação - que legitimava, por exemplo, a conjuração mágica - se desfez e deu lugar à noção de representação, a partir da qual a palavra perdeu sua continuidade ontológica com as coisas, sua relação direta com a realidade a que antes se referia.
Com isso, começaram a aparecer diversas outras separações lá onde não havia antes, favorecendo o surgimento de dualidades: entre natureza e cultura; entre sujeito e objeto; entre conteúdo e expressão; entre sonho e realidade. Impulsionado pela filosofia de Descartes, o próprio pensamento passou a ser compreendido de forma dualista, na qual o corpo e a mente possuem naturezas distintas. Neste cenário, o sonho passou a ter cada vez menos relevância e realidade. Apenas no século XIX os sonhos recuperaram sua seriedade, a partir do debate científico e filosófico trazido por Sigmund Freud. Porém, os sonhos eram abordados a partir de seu aspecto representativo: eles não eram considerados em si, mas enquanto representações de outros conteúdos. Nelson enumerou diversos pensadores que passaram a investir suas pesquisas para além da representação dos sonhos, rumo à sua assimilação na realidade. Foram citados Carl Jung - quem chamou atenção para a questão da assimilação dos sonhos, embora seu sistema tenha permanecido no aspecto interpretativo -, Félix Guattari, que operou uma crítica a Freud atentando para a distribuição de elementos oníricos pelos mais variados aspectos da vida -, e finalmente María Zambrano, que considera a magia como uma primeira tentativa da Humanidade no sentido da concretização e da realização de sonhos. Diante destes desdobramentos, Nelson lançou uma indagação: não seria todo exercício da Humanidade uma tentativa de trazer os sonhos à realidade?
Uma referência filosófica à qual A origem se mostra bastante fiel é o cone da memória, um esquema proposto por Henri Bergson no final do século XIX, em sua obra Matéria e memória. A dimensão virtual do tempo é representada pelo cone que se expande, desde o presente - seu vértice -, dando acesso ao atemporal, à totalidade dos tempos. Este movimento corresponde à temporalidade vivenciada pelos personagens do filme, para os quais o tempo se alarga a cada nível mais profundo do sonho. Nelson também comentou ressonâncias das questões abordadas pelo filme com pesquisas da física do século XX, como o conceito de emaranhamento quântico, e as posteriores especulações de Roger Penrose em torno de uma consciência quântica, que favorece a relação de nossas mentes até mesmo com outras partes do universo. Seriam os sonhos uma espécie de jornada cósmica?
Com as múltiplas questões do público, o debate se estendeu aprofundando alguns temas discutidos e trazendo novas questões. Eis uma prova de que o labirinto de A origem pode nos deixar alegremente emaranhados no fio de Ariadne, diante de um inesgotável manancial de possibilidades a serem discutidas. Para continuar a discussão, não deixe de visitar o blog Cosmos e Consciência, editado pelo Nelson Job, e também um artigo publicado por ele na revista Cosmos e Contexto. Nossa próxima sessão acontece no dia 6 de outubro de 2012, o primeiro sábado de outubro, com a exibição do filme Santiago (2007), de João Moreira Salles. Teremos a honra e a alegria de receber, como convidado do mês, Luis Antonio Baptista, psicólogo e professor titular do Departamento de Psicologia da UFF, com a palestra A ética do anônimo. Baptista é doutor em Psicologia pela USP e pós-doutor pela Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma 'La Sapienza'. Anote na agenda e divulgue! Até lá!
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